Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Meditações - o presente é o puro devir

Braudel (2005) radicalizou as críticas a um tempo considerado homogêneo, universal e linear e propôs a noção das múltiplas temporalidades. A partir desta perspectiva, não se pode mais negligenciar a presença de tempos que decorrem em diferentes ritmos na análise da sociedade, a saber: o tempo curto, comparado às ondas do mar, a espuma dos acontecimentos políticos; o tempo médio, como as correntes marítimas, das conjunturas; o tempo longo, comparado ao fundo do mar, das estruturas sociais e há quem fale do tempo longuíssimo, quase imóvel das mentalidades.

Koselleck (2006) estabeleceu uma perspectiva em que cada presente não apenas reconstrói o passado, problematizando as questões geradas em cada atualidade, mas que cada presente ressignifica o passado e o futuro. Aquele se coloca como uma nova maneira de se estabelecer as relações entre o passado e o futuro, pois o presente é a um só tempo, o passado do futuro e o futuro do passado. Ele contribuiu fundamentalmente para se construir novos diálogos entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas no campo da teoria da história.

A palavra mais indicada para caracterizar o presente é o puro devir (BERGSON, 1999, p. 160­162). O passado não passa, conserva, e aquilo que conserva é, as lembranças permanecem. Por este motivo, Ricoeur (2007, p. 436) afirma que para Bergson o esquecimento é inconcebível. Este passado que é, não está a serviço de nada, e é o interesse do presente que evoca o passado, ou certas características dele. O passado é o virtual e, enquanto virtualidade é real, é o tempo.

O segundo é o paradoxo do salto. Este postula que no processo de rememoração não se vai do presente ao passado, posto que o sentido que se estabelece é exatamente o oposto. Porque o evocar das lembranças supõe se instalar a partir do passado (BERGSON, 1999, p. 158). Nós saltamos no passado sem sair do presente. Este salto ocorre sempre em uma ou outra região do passado. Esta ou aquela região do passado é virtual. Suponha­se que se encontra a lembrança evocada. O entendimento destes paradoxos é prejudicado porque entendemos o tempo a partir de uma representação horizontal deste, que é na verdade pura abstração. Mas no tempo que dura, o passado coexiste ao lado do presente. Pelo paradoxo do salto, as distancias cronológicas não afetam a lembrança. Estamos todo o tempo saltando em uma região do passado.

O terceiro é o paradoxo da contemporaneidade. Neste, Bergson afirma que o passado é contemporâneo do presente. Este é demonstrado pela rememoração. A lembrança é uma atualização de uma imagem presente (BERGSON, 1999, p. 156). O passado é contemporâneo da lembrança. O passado está entre a percepção e a imagem­lembrança. O passado não foi presente, ele é o presente que está passando.

Em seguida temos o paradoxo da coexistência. Neste, o passado coexiste com o presente que passa (BERGSON, 1999, p. 172­173). O homem comum pensa a passagem do tempo da seguinte forma: o passado se forma somente depois do presente passado e o futuro depois de passado o presente. Neste sentido, passado é lembrança que passou, e o futuro é o que ainda não existe. Bergson subverte esta ordem e diz que o passado não vem depois do presente passar, ele coexiste com o presente que passa. O presente que passa, já é presente­passado. O agora só passa, porque coexiste com um presente que está passando. E, o agora só passa, porque coexiste com o passado (BERGSON, 1999, p. 175). O devir não tem início e não terá fim. Simplesmente existe. A lem­ brança está no passado, mas não é o passado. A lembrança é o presente que foi. O passado conserva o presente que está passando. O passado nunca foi presente. O que foi presente é o que está no passado, a lembrança do que foi. O futuro é o aberto, o incerto, o passado é o que garante a diferença (BERGSON, 1999, p. 160­162). A experiência garante a inovação. A indeterminação gera o novo a partir da experiência. O mundo físico pode trazer a duração na matéria. Mas, quando insere­se o vivo, existirá a abertura para a criação.

Para se evocar o passado, a pessoa recorre, em geral, às lembranças de outras, é preciso se transportar a pontos de referência que se colocam fora de si, determinados pelas regras construídas pela sociedade. A memória individual não pode funcionar sem os instrumentos que são as palavras e ideias, as quais não foram inventadas pelos indivíduos, antes foram tomadas de empréstimo do ambiente social, tais como a linguagem, o tempo e o espaço (HALBWACHS, 2006, p. 72).

As discussões anteriores são fundamentais para se entender e se pensar teoricamente o corpus documental que vai ser o gerador das análises. Para este propósito, foi eleito o último volume da obra de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, denominado O Tempo Redescoberto (PROUST, 1992). Neste livro, podemos buscar uma série de reflexões sobre o tempo, que decorre, que dura, que age sobre os indivíduos e sobre a sociedade e que apresenta múltiplos ritmos e fluxos. E apresenta as marcas do conflito em sua produção, na narrativa, nos sentimentos flagrados e na própria temática. O livro aparece como uma espécie de acerto de contas com o passado, no qual o autor revisita diversos momentos de sua vida, de suas relações e das pessoas que fizeram parte dela. E justamente neste ponto, o problema do tempo se coloca de maneira indelével, pois este processo de revisita, reconstrução, retorno, não pode ser operado sem que uma concepção de tempo seja discutida, construída e principalmente praticada. A própria narrativa é sintoma e método para se pensar um tempo que se apresenta de maneira não cronológica, do tipo mecânico e convencionado a partir da física e da astronomia. É sintoma, pois a primeira característica que se destaca no texto é a descontinuidade. Não se deve procurar um “fio da meada”, uma pista que se desvela, uma narrativa evolutiva com um desfecho característico dos romances realistas e naturalistas. Método, pois para se tratar de outra temporalidade, a narrativa tradicional com partes definidas e ordenadas em início, meio e fim não responde e não contempla o problema proposto. Portanto, a inovação estabelecida por Proust pode ser percebida tanto em sua narrativa descontinua, como na própria concepção de tempo, que é pensado na obra como duração e afetividade. Este é marcado pela presença que suspende a mecânica do tempo homogêneo e partilhado da cronologia e do evolucionismo. Voltado para um passado que se faz presente, marcado de afeto, contra um tempo voltado somente para o futuro do progresso positivista. É um tempo que nega o saber temporal da história vigente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Tempo vazado que permite composições e recomposições, configurações e reconfigurações, caleidoscópio que provoca tantas combinações quantas vivências se experimenta. A busca, na estrutura do texto, por uma sequência lógica se mostra uma tarefa inútil, tanto porque não será encontrada, e principalmente, porque não se terá o entendimento fundamental dos objetivos e dos problemas

Isto ocorre quando, concordando com Bergson, intuímos (DELEUZE, 1999, p. 7­26) o tempo, ou seja, vivemos na duração. Sair do tempo da representação, quando fazemos isso vivemos o tempo como experiência imediata. O relógio, o calendário e as grandes repartições da história especializam o tempo e negam a apreensão interior deste. E o que seria duração para Bergson? Ele responde com uma metáfora que dá conta do caráter interior e experiencial que são a sua marca:

Contrário a uma perspectiva de progresso, no qual o tempo é como uma flecha em disparada em direção ao futuro, Proust propôs uma experiência temporal mais em consonância com a figura de um caleidoscópio. Rompe­se aqui com a percepção de continuidade e abre­se à possibilidade de rupturas, aliadas a contínuos arranjos que dependem apenas das diferentes vivências experimentadas pelos indivíduos — e, trazendo para uma perspectiva social, à maneira de Halbwachs, das diferentes maneiras pelas quais, os diferentes grupos sociais organizaram sua relação com o tempo.

O tempo que dura é granulado, onde os seus interstícios são preenchidos pela subjetividade e afetividade, responsáveis pela constituição de outra temporalidade, radicalmente distinta daquela marcada pelo rigor cronológico. Este tempo, marcado pela memória, é uma reminiscência, que possui uma organização temporal que lhe é peculiar. O tempo que Proust busca redescobrir é, então, o tempo destas reminiscências. Este perpassa, de maneira perpendicular, o nosso tão conhecido tempo da cronologia. Mas, diferente deste, não está sujeito às provas materiais, posto que não é naturalizado, muito menos ordinário, antes, é sentido. E o que vai ligar a convivência de dois passados, ou melhor, o que fará o presente vivido, cúmplice do presente que já passou, é a memória, elemento fundamental para se entender esta concepção temporal. Deste modo, a contribuição de Proust a este debate é sua provocação no sentido de desnaturalizar a questão do tempo. É destacar seu caráter artificial e separado da experiência e subjetividade humana e propor uma perspectiva temporal que apreenda a densidade e a complexidade dos seres humanos e suas relações. Perceber a forma dramática pela qual as diferentes sociedades humanas se relacionam com as diferentes formas de lidar com esta questão. Compreender que os homens ritualizam sua forma de se relacionar com a passagem do tempo, dotando­a de significados diferentes. E, por fim, se dar conta de que no presente se coagulam diversos presentes, passados e futuros.

Carlos Nássaro Araújo da Paixão

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