O Museu Dr. Joaquim Manso, na Nazaré, mantém até 2 de Julho uma exposição sobre José Pereira Cardina, que na primeira metade do século XX teve naquela localidade uma fábrica de relógios de torre. Ontem à tarde, decorreu a inauguração da mostra.
Sobre a figura de Cardina, escrevemos em História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003):
[...] Cardina nasceu a 6 de Junho de 1882, na freguesia do Juncal, concelho de Porto de Mós. Os pais eram naturais da Cruz da Légua, localidade vizinha.
Familiares seus que com ele tiveram contacto directo falam de uma criança cheia de curiosidade por tudo o que o rodeava, atraído por experiências, pela leitura, pelos números, pelo modo como os brinquedos funcionavam. Era irrequieto, sempre pronto a pregar uma partida.
Terá feito a quarta classe e não estudou mais. Aos doze anos, como acontecia por todo o país, em meios rurais ou urbanos, começou a trabalhar. O pai meteu-o de servente, a ajudá-lo na construção civil. Passou toda a juventude a fazer massa e a assentar tijolo.
Mas o seu carácter irrequieto ter-se-á acentuado com os anos, causando-lhe alguns problemas e consequências irreversíveis.
Dois nazarenos, o historiador Paulino Mota Tavares e o seu irmão José Mota Tavares (que tem investigado a relojoaria férrea em Portugal) empenharam-se agora em desenterrar do anonimato esta figura do Cardina, recolhendo documentação e testemunhos.
Segundo contam várias pessoas que o conheceram, uma noite terá resolvido saltar da janela do quarto para assistir a um baile na aldeia. Deixou a janela encostada mas, ao regressar, tudo estava fechado.
José Pereira dirigiu-se a um palheiro anexo à casa, sem se aperceber de que nesse arrumo o pai tinha guardado cal viva, agora um pouco escondida por molhos de palha, Tacteou, sentiu boa cama e deitou-se. Acordou no dia seguinte com o corpo marcado para sempre. Dizem que nunca mais foi o mesmo, queixando-se dos braços e das pernas, maldizendo sempre do seu destino.
Conta-se ainda que, estando um dia o José Pereira numa taberna, encontrou num banco corrido um outro homem, bastante toldado pelo vinho. Este levanta-se a cambalear e sai para a rua. “Que grande cardina!”, terá exclamado José Pereira, por entre as risadas da assistência. Terá nascido uma alcunha. É que, a partir daí, José Pereira começa a ser apelidado de Cardina. Como em muitos outros casos, a alcunha passa a nome registado. Parece que a José Pereira lhe soava bem, pois passou a assumir oficialmente o Cardina como se o apelido lhe tivesse chegado de outras gerações…
Sabe-se que José Pereira Cardina chega à Nazaré por volta de 1909, com 27 anos, já casado com Palmira de Sousa. Terá escolhido a localidade por questões de saúde, recomendado pelos médicos, à procura do sol e dos banhos de mar quentes para aliviar as dores das queimaduras sofridas na juventude, mas não se vislumbra como decidiu mudar da construção civil para outro ramo completamente diferente.
O certo é que Cardina aluga no centro da vila, na rua, um pequeno cubículo, com porta para o passeio da praça Sousa Oliveira, onde instala a sua oficina de reparação de relógios de bolso. Terá, entretanto, deambulado pela região, apreciando os relógios de torre que por ali havia instalados.
Prodigiosa personagem! Sem formação específica, apenas tendo como arma a intuição, a observação e um cérebro a trabalhar como uma engrenagem afinada, Cardina começa por “subir” na proporção, analisando, reparando e mesmo fazendo relógios de sala, copiando depois de cabeça, sem esquemas ou desenhos, um desses exemplares de torre, fazendo ele próprio todas as peças. E coloca o seu “protótipo” no passeio público, frente à porta da oficina. Uma espécie de “anúncio” à sua actividade, e que terá surtido efeito, pois acumulavam-se os curiosos passantes, a verem o trabalho de rodas dentadas e engrenagens…
As “engenhocas” do relojoeiro, na Praça da Nazaré, tornam-se célebres para locais e forasteiros. Mas o feitio de “mestre” Cardina, que chegou a cantar no Coro da Nazaré, continuava ser o mesmo: personalidade forte, bom contador de anedotas sobre mulheres ou padres, não era de grandes mesuras para a clientela.
Contam os mais velhos que, um dia, aparece-lhe um cliente com um relógio de bolso, de qualidade, mas avariado, que ali lhe deixa para ver o que se podia fazer. O relojoeiro abre a máquina, detecta a peça quebrada, substitui-a, limpando todo o mecanismo. Quando o cliente volta, Cardina coloca-lhe o relógio junto ao ouvido, para que ele possa apreciar um tiquetaque sem mácula. “Quanto lhe devo?”. “Cinco escudos”, responde-lhe, impassível, um Cardina que, segundo parece, fazia os preços de acordo com a cara do freguês. “É muito caro”, protesta o outro. Cardina pega no relógio de novo, abre-o mais uma vez e, para horror do dono, atira com um punhado de areia para dentro do mecanismo. “Tome lá, não é nada!”. E o cliente lá terá ido, porta fora, espalhar mais uma história do Cardina.
Um dos seus empregados, ainda vivo, conta, porém, que, enquanto relojoeiro, Cardina era só qualidades, sendo um espectáculo vê-lo a trabalhar: tinha a mão firme, atenção espacial, sensibilidade táctil, destreza, coordenação de ambas as mãos. Além disso, era um criativo, que não conhecia horários, totalmente dedicado à sua arte. “Levantava-se muitas vezes, de noite, para resolver um problema, cuja solução lhe tinha surgido, de repente, durante o sono”, acrescenta uma filha sua.
A primeira grande encomenda que Cardina consegue obter terá sido a do relógio para a Igreja de Nossa Senhora da Nazaré, no Sítio. Num processo em que se interessam igualmente as firmas Andrade Mello (Porto), Garage Nelas (Viseu) e A. F. Arede Soveral (Sacavém), Cardina ganha e monta em 1921 a máquina que ainda hoje lá se encontra (desligada, mas muito bem conservada, num local ideal para se poder admirar). [...]
A exposição, organizada pelo museu, com a colaboração de um bisneto de José Pereira Cardina, Sérgio Cardina, e de Rui Remígio, um nazareno que adquiriu o prédio onde a família Cardina vivia e tinha oficina, tem entrada livre. (fotos Fernando Correia de Oliveira)
Um relógio Cardina, de 1935, que esteve em Monforte
A coordenadora do Museu Dr. Joaquim Manso, Dóris Santos, fala na inauguração da exposição. Ainda na foto, da esquerda para a direita - Sérgio Cardina, Carlos Coutinho (Director dos Museus do Oeste) e Mário Bulhões (professor da Universidade Sénior da Nazaré). Em baixo, outros aspectos da inauguração da exposição - fotos Manuel Moura)
À direita, um dos organizadores da exposição, Rui Remígio
Sérgio Cardina, ao centro, fala sobre a figura do bisavô. à direita, Carlos Coutinho, Vice-Presidente da Câmara da Nazaré com o pelouro da Cultura. Em baixo, algumas fotos, documentos e relógios de Cardina e da família (arquivo Fernando Correia de Oliveira)
Anúncio de 1959
Relógio Cardina em Ançã
Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, para o qual Cardina fabricou o primeiro relógio de torre
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