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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"


Leituras acidentais de um ocidental. Décima crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Janeiro de 2005.

Fernando Correia de Oliveira*

O factor China

Num mundo prenhe de incertezas e perigos à escala global, a última coisa de que o século XXI precisaria era de uma China desestabilizada. Como esteve, por exemplo, grosso modo entre 1850 e 1950, numa das cíclicas atracções do Império do Meio pelo caos.

Como se diz entre a classe dirigente chinesa, “A China precisa do mundo, o mundo precisa da China, e o que é bom para a China, é bom para o mundo”. Nesta frase que o regime ditatorial no poder em Beijing desde 1949 utiliza quase sempre que fala para e no exterior, estão obviamente subjacentes uma reserva mental e uma ameaça: “deixem-nos governar sem pressões, nós sabemos melhor; se a estabilidade social for destruída, espalharemos as ondas de convulsões, não apenas por todo o vasto e populoso território chinês, mas também por toda a Ásia Extrema e até pelo mundo”.

Com a globalização das trocas financeiras e comerciais, com a China a ser o maior íman de atracção de investimento estrangeiro e a ter nas mãos grande parte da dívida pública norte-americana, não é preciso saber muito de economia para se perceber que, se o país mais populoso do mundo entrar em recessão profunda, para já não falar num quase-caos semelhante à Rússia, o mundo sofrerá todo com isso.

Muitos disparates se escreveram, entre os chamados “China hands” do Ocidente, no rescaldo imediato da repressão ocorrida a 4 de Junho de 1989, simbolizada pelo palco trágico de Tiananmen. Que a China estava perdida mais uma vez para o mundo, que o regime se iria fechar por mais umas décadas. Que se provava, afinal, a imutabilidade de uma civilização, avessa à modernidade, fosse ela dirigida por imperadores, senhores da guerra ou comunistas-nacionalistas.

Irónico, não é? Depois do 4 de Junho, em apenas década e meia, a China abalou a ideia-feita da imobilidade eterna e mudou mais do que alguma vez na sua história, mais rapidamente do que alguma vez uma sociedade possa ter mudado em todo o mundo. O crescimento económico, o investimento estrangeiro, o turismo estrangeiro, a mobilidade das populações, a infiltração (apesar de tudo) de pontos de vista externos através dos media – tudo tem contribuído para a criação crescente de uma classe média, urbana, cada vez mais rica, cada vez menos dependente do Partido.

Poderão as coisas voltar atrás? Poderá a China voltar a fechar-se, por pressões sociais internas, por o Partido Comunista não ter mão na situação? O fosso entre ricos e pobres, que não para de crescer, trará tensões irresolúveis? Uma aventura nacionalista destinada a “recuperar” Taiwan, levará ao confronto com os Estados Unidos? E a questão do Tibete, como será resolvida?

Desde logo, toda a situação social de maior relaxamento em relação à vida privada dos cidadãos tem levado a uma incipiente, mas cada vez mais forte, sociedade civil. Que não tem fortalecido, até agora, as correntes dissidentes clássicas (políticas, anti-comunistas, que colocam a questão do poder), mas outras que se preocupam com o meio-ambiente (oposição a grandes barragens, exigência de indústrias menos poluidoras), a segurança no trabalho (morrem em desastres, por dia, 15 mineiros, quatro vezes mais baixas, só este ano, do que soldados americanos mortos no Iraque), a prepotência de um qualquer quadro local (terras são confiscadas, populações são deslocadas à força).

O Partido Comunista Chinês, atento a tudo isto, acaba de lançar uma campanha “para a construção de uma sociedade harmoniosa” e a Agência Noticiosa Nova China descreve o país como estando numa encruzilhada: ou “vai na direcção de uma era dourada de desenvolvimento” ou “vai entrar numa era cheia de contradições”.

Segundo o último relatório da Amnistia Internacional (AI), assiste-se de novo no país a uma vaga de repressão para quem ouse questionar em público todos estes problemas. A AI fala de um movimento diversificado de dissidência, que vai desde grupos cristãos que reivindicam o direito de praticar o seu credo em público, às chamadas “mães de Tiananmen”, familiares das vítimas da repressão do 4 de Junho, que exigem uma reavaliação dos acontecimentos. “Os direitos económicos, sociais, culturais, cívicos e políticos – todos têm sido sujeitos de activismo na China”, diz a organização. Tudo isso tem acabado, invariavelmente, em detenções, prisões arbitrárias e intimidação dos activistas.

Segundo a revista Kaifang (“Abertura”), de Hong Kong, citada na imprensa ocidental (1), o líder máximo chinês, Hu Jintao, terá atacado durante o último plenário do comité central do Partido o que chamou de “difusão das ideias da liberalização burguesa”, tendo acusado os defensores das reformas democráticas de “criarem a desordem”. Para o Chefe do Estado, do Partido e do Exército, a questão do multi-partidarismo “é um não-assunto na China”.

Ainda segundo a Kaifang, Hu Jintao disse aos seus camaradas: “Devemos estudar Cuba e a Coreia do Norte na sua gestão da ideologia. Embora a Coreia do Norte esteja a braços com problemas económicos, a sua política foi sempre correcta”.

Se este tipo de discurso for verdade – e a onda de repressão recente, que deverá crescer até aos Jogos Olímpicos de 2008 em Beijing, para “limpar o terreno” – estamos de volta à ideologia na liderança. Por outras palavras, o regresso à importância da cor do gato e não ao facto de ele conseguir ou não caçar ratos…

Henry Kissinger, em artigo recente (2), faz notar: “Na nossa época, o aparecimento da China como potencial superpotência tem um maior significado histórico ao marcar uma mudança no centro de gravidade dos assuntos mundiais do Atlântico para o Pacífico”. O antigo Secretário de Estado norte-americano, que delineou a aproximação histórica de Nixon à China de Mão e que desde há muito tem defendido o Partido Comunista Chinês, em nome da estabilidade (e, provavelmente, dos seus investimento pessoais no país), está optimista: “É quase certo que a China não irá confiar no poder militar como seu instrumento principal para atingir um estatuto internacional. […] A China não levará a cabo uma política tão imprudente como a União Soviética, que ameaçou todos os seus vizinhos e desafiou os Estados Unidos para uma corrida à sobrevivência”.

Kissinger acha que, no que respeita à China, “a prioridade deve ser impedir a ascensão das ideologias nacionalistas, que estão a substituir o comunismo, e que poderão levar a uma viragem para o confronto”. A principal “pedra no sapato” das relações Washington-Beijing continua a ser Taiwan e Kissinger apenas expressa um desejo: que ela seja resolvida de forma pacífica.

De fora da análise de Kissinger fica o problema do Tibete. Este Dalai Lama poderá durar mais uns anos mas, quando morrer, como irão reagir as forças mais radicais – os jovens – no seio da comunidade expatriada tibetana, ou no interior do país, até agora segurados pelo líder religioso para que não avancem para a resistência armada à ocupação?

Mas, acima de tudo, fica de fora um problema que tem sido pouco analisado e que, secretamente, os dirigentes chineses sabem ser o de mais difícil resolução: o vasto território do Xinjiang, no noroeste do país. A China é composta em 93 por cento pela etnia Han e os restantes 7 por cento são preenchidos por 55 minorias oficialmente reconhecidas (a maior delas é a tibetana). Mas o Xinjiang, onde a China tem reservas de gás e petróleo, e onde baseia o seu programa espacial e de defesa de foguetões de longo alcance, é povoado maioritariamente por povos islamizados. Ciclicamente, uigures, tadjiques, cazaques, uzbeques (todos turcófonos, alguns de feições bem “ocidentais”) têm-se revoltado contra o poder chinês. Quando a URSS existia, essa fronteira estava “sossegada”. Depois da implosão, e da criação de estados islâmicos independentes na região, o “vírus” do fundamentalismo foi alastrando, dando uma ajuda aos sentimentos nacionalistas de povos separados apenas por fronteiras artificiais. A região faz ainda fronteira com o Afeganistão e o Irão, o que ajuda a um quadro de desestabilização por motivos religiosos.

Um acontecimento como os Jogos Olímpicos de Beijing seria o palco ideal para uma qualquer acção terrorista de grande impacto. Os dirigentes chineses têm boa consciência disso.

*Jornalista e investigador

1 – Le Temps, Genebra, 09/12/04
2 – International Herald Tribune, 06/07/11/04

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