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domingo, 2 de novembro de 2014

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"


Leituras acidentais de um ocidental. Oitava crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Novembro de 2004.

Fernando Correia de Oliveira*

O fim da União Europeia

Dentro de um mês, na cimeira de primeiros-ministros e chefes de Estado da União Europeia, será apreciado o relatório da Comissão, em que se recomenda o início de conversações formais com a Turquia, com vista ao seu ingresso pleno na organização.

A influente The Economist dedica uma das suas capas de Setembro ao assunto, titulando: “Why Europe must say yes to Turkey” (Porque é que a Europa deve dizer sim à Turquia).

Ao argumento de que a Turquia é demasiado grande – tem actualmente 71 milhões de habitantes e, se se juntar à UE, dentro de 15 anos terá mais população do que a Alemanha, que é actualmente o maior membro da União – The Economist diz que isso pesará, mesmo assim, pouco, pois estaremos apenas perante 15 por cento do total da população e perante um país entre 28 ou 30.

Quanto ao facto de a Turquia ser demasiado pobre – o seu PIB per capita é apenas de 29 por cento em relação à média da União, e mais de um terço da sua população vive da agricultura – a revista aponta o facto de a entrada não ser imediata, devendo demorar pelo menos dez anos. E diz que haverá, naturalmente, um longo período de transição antes de haver livre circulação de turcos.

A terceira questão diz respeito ao facto de a Turquia não ser, geograficamente, na Europa. The Economist defende que parte do território do país candidato é na Europa, nomeadamente a sua principal cidade, Istambul. E recorda que, pelo menos desde 1963, a então CEE já achava a Turquia suficientemente europeia para a considerar eventualmente, um dia, como candidato.

Finalmente, vem a questão religiosa. A Turquia, embora sendo formalmente um Estado laico, tem uma população esmagadoramente islâmica. Embora a União Europeia não seja um clube cristão e um dos seus princípios básicos seja o respeito pela liberdade religiosa, o argumento contra é o de se dizer que, pela sua natureza intrínseca, o Islão é incompatível com o sistema democrático, secular e liberal. The Economist reconhece que, no poder, em Ancara, está um partido islamista e que o actual primeiro-ministro, Erdogan, foi uma vez colocado na cadeia por ter recitado em público versos islâmicos que incitavam ao ódio religioso. Mas diz que a União tem sempre o poder de fiscalização e que a Irlanda, quando se juntou à organização, nos anos 70 do século passado, tinha uma Igreja Católica tão ou mais metida na vida pública do país, mantendo a contracepção, o aborto e o divórcio ilegais.

Perante tudo isto, The Economist lança o argumento final, a favor da entrada da Turquia na União: “Num mundo pós 11 de Setembro, um não à Turquia teria consequências catastróficas. Se a União Europeia voltasse agora as costas à Turquia, não só poria em perigo as próprias reformas em curso no país, como isso seria largamente interpretado no mundo muçulmano como um ataque contra todo o Islão”.

Perante isto, que fazer se não abrir as portas da Europa à Turquia?

Desde logo, a Turquia não é Europa, por mais voltas que a geopolítica tente dar ao assunto. Na ponte sobre o Bósforo, que liga o continente asiático a Istambul, os cartazes turcos não mentem: “Bem-vindo à Europa”. Depois, a Europa fez-se, construiu-se ao longo de séculos, definiu a sua identidade contra um dos seus inimigos mais perenes, o Império Otomano, de que a Turquia é o seu herdeiro histórico. Falar de liberdade religiosa é sempre muito conveniente, muito politicamente correcto, mas aceitar mais de 70 milhões de muçulmanos, que não respeitam, por princípio, a esfera laica, a juntar aos 12 milhões de muçulmanos que, já hoje, são cidadãos da União Europeia e que mostram, todos os dias, as maiores dificuldades de integração no modelo laico, se não mesmo o combatem activamente, isso é a receita para o desastre.

Algumas vozes corajosas têm-se levantado contra esta fuga para a frente. O primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, perguntava há dias no Wall Street Journal: “Será que queremos que o rio do Islão entre no leito do secularismo?”. O comissário austríaco para a Agricultura, Franz Fischler, apontou publicamente aquilo que está à vista de todos, mas poucos se atrevem a dizer: a Turquia é culturalmente “oriental”, geograficamente “asiática” e a adesão poderia abrir “uma caixa de pandora geo-estratégica”. Frits Bolkestein, o comissário europeu para o Mercado Interno, disse que, admitir a Turquia seria “tornar em vão” a derrota histórica que o exército otomano sofreu às portas de Viena, em 1683. E acrescentou, em declarações ao The Guardian: “Após a entrada da Turquia, a EU será simplesmente incapaz de manter as suas actuais políticas agrícola e regional. A Europa implodirá”.

O Presidente francês, Jacques Chirac, anunciava entretanto uma revisão constitucional que irá permitir aos franceses pronunciarem-se, em referendo, sobre a entrada da Turquia na EU. Espera-se que esta medida democrática – atacada desde logo, com sobranceria pelos dirigentes turcos – possa ocorrer noutros países membros da União.

Numa ingerência inadmissível sobre os destinos da Europa, esse “brilhante” espírito analítico da política internacional que dá pelo nome de George W. Bush pressionava publicamente a Europa, em Junho, num discurso nas margens do Bósforo, dizendo que a Turquia tinha que entrar na União Europeia. Por uma vez, a reacção francesa, pela voz do Presidente Chirac, parece ter ganho a unanimidade do continente: “esse não é um assunto que diga respeito aos Estados Unidos”.

Mas os estrategas que moldam o pensamento dominante em Washington têm a entrada da Turquia na União Europeia como um dos pontos principais na sua agenda. “A adesão ancoraria a Turquia ao Ocidente, fortificá-lo-ia como uma firewall contra o terrorismo e ajudaria a torná-la num modelo de democracia para o mundo muçulmano”, disse recentemente na Foreign Affairs um dos membros do Council on Foreing Relations, de nova Iorque, David Philipps.

“[…] a UE, ou uma certa ‘inteligência’ da UE, surpreendentemente persiste em trazer para o ‘clube’ a Turquia asiática e, pior, islâmica”, afirmava há dias Vasco Pulido Valente (1). “Porquê? Porque a Turquia pertence ao passado da Europa (pertence, de facto, como inimiga); porque a Turquia se tornou secular e democrática (uma coisa mais do que duvidosa: o actual Governo, por exemplo, pensa em criminalizar o adultério); porque a Turquia serve de ‘barreira’ ao extremismo árabe (ou talvez também lhe sirva de caminho e ajuda); e porque, enfim, a ‘Europa’ deve mostrar a sua tolerância e não deve aparecer ao mundo como um império cristão, rico e xenófobo.

Esta mistura de má-fé, megalomania e medo é receita para desfazer a EU ou, pelo menos, para a reduzir a uma forma vácua. Por muito que espante a burocracia da EU e os beatos do costume, a realidade existe e não cabe nos planos deles”.

Parte-se do princípio de que a adesão terá um efeito positivo na Turquia. Quem assim pensa foi também responsável, na Guerra-fria, por alimentar o fundamentalismo islâmico, face ao inimigo comum que era o comunismo. Viram-se os resultados, cuja factura só agora começámos a pagar. O mais provável é que o “antídoto” laico europeu não funcione e seja aniquilado, em duas ou três gerações, pelo “vírus” religioso islâmico, que já hoje se encontra fora de controlo.

O primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, em entrevista ao El País (2), lançava, ameaçador: “O único fim que aceitamos é a adesão”. E acrescentava: “A Turquia está em vias de se converter num membro da União Europeia, e isso já não tem recuo possível”. Além deste discurso “democrata”, Erdogan não deixava de lançar ameaças veladas: “O mundo islâmico seguirá com atenção as negociações entre a Turquia e a EU. Se tiverem um resultado positivo, o efeito será imenso”.

Qual efeito? Quando Erdogan foi preso, em 1998, foi porque recitou, num comício, um poema comparando minaretes com baionetas. Já hoje, na Europa, aumenta o número de minaretes, logo, de baionetas. É óbvio que Erdogan não mudou a sua forma de pensamento – é um dirigente de um partido fundamentalista islâmico, acredita profundamente no Estado religioso, mas é suficientemente hábil para usar o sistema laico – agora o turco, mais tarde o das organizações políticas da União – para poder entrar no seio do que considera o seu inimigo civilizacional, o Ocidente.

Porque é que a Turquia quer aderir à União Europeia? As vantagens económicas que daí advirão são evidentes, e são essas as razões publicamente expressas pela elite urbana turca. Mas não se ouvem discursos sobre as vantagens da adesão em termos de democracia, direitos humanos, separação da Igreja e do Estado, reforço da esfera laica, construção de um “ideal” europeu (que nem os dirigentes europeus sabem hoje muito bem qual é)..

E, depois, há uma “agenda oculta”, que todos sabem existir, mas de que também ninguém no Ocidente ousa falar.

Por mais que os dirigentes turcos disfarcem, perorando discursos de modernidade, há afloramentos aqui e além sobre o que esperam os cidadãos europeus quando abrirem as portas do “clube” a este Oriente profundamente religioso: o novo Código Civil turco só não criminalizou recentemente o adultério porque, por agora, era preciso continuar a negociar com a Europa, e o escândalo dessa medida foi brutal. Mas continua em vigor a criminalização das relações sexuais consentidas entre jovens de 15 a 18 anos e não se avançou para a proibição e criminalização dos testes de virgindade, exigidos pelas famílias turcas antes de qualquer casamento. Medieval? Não, apenas “especificidades culturais”, dirão alguns… Especificidades culturais que serão impostas ao todo da sociedade, desde que haja força para o fazer, não tenhamos disso dúvidas.

No seu livro Who Are We?, o académico de Harvard, Samuel Huntington, não deixa de apontar que a essência do “multiculturalismo é a antítese da civilização europeia” porque “ele é, basicamente, uma ideologia anti-Ocidental”. E afirma, entre o cínico e o assustado: “Estou fascinado como a Europa e os muçulmanos se confrontam lá, redefinindo a sua identidade religiosa”. Segundo ele, as forças em presença são tais que “a Europa estará profundamente dividida dentro de 25 anos”.

Perante tudo isto, começa a ganhar cada vez mais credibilidade a teoria de outro historiador norte-americano, Bernard Lewis, de Princeton, com diversas obras publicadas sobre o mundo islâmico, e que tem considerado que a Europa será islâmica no final do século XXI. Só que, nessa altura, já não será Europa, terá sido engolida pelo imenso Oriente, atávico, obscuro – que tanto fascínio ingénuo provoca junto de alguns intelectuais europeus, como o comunismo provocou em todo o século XX.

*Jornalista e investigador

1 – Diário de Notícias, 01/10/04
2 – El País, 05/10/04

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