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quarta-feira, 2 de abril de 2014

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental" - o Armagedão nuclear


Leituras acidentais de um ocidental. Segunda crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Abril de 2004.

Fernando Correia de Oliveira*

A ficção política, tal como só o académico britânico Timothy Garton Ash a sabe fazer: um atentado em Paris, em 2009, perpetrado por duas francesas islamistas, que fizeram detonar um pequeno engenho nuclear. (1)

Uma ampla zona compreendida entre o boulevard de Montparnasse e o rio Sena ficou destruída neste atentado suicida das duas jovens, que tinham ligações ao Grupo Islâmico Armado (GIA), de origem argelina. Aproximadamente 100 mil pessoas ficaram mortas ou feridas e o coração de uma das cidades mais belas do mundo ficou reduzido a ruínas fumegantes.

Na sua ficção deste mini Armagedão o professor de Oxford coloca Hillary Clinton na presidência dos Estados Unidos e Nicolas Sarkozy na de França. A radicalização das duas mulheres islâmicas terá ocorrido depois de terem sido expulsas da escola oficial, por teimarem em usar o véu após as leis aprovadas por Paris em 2004. E seriam oriundas de um bairro miserável dos arredores da capital, habitado maioritariamente por islamizados, e onde a taxa de desemprego era de 30 por cento.

Como foi possível os serviços secretos franceses não conseguirem detectar a tempo que uma bomba nuclear pequena, transportável, tinha caído em mãos de radicais islâmicos seus cidadãos? Timothy Garton Ash dá uma explicação muito plausível: houve pouca ou nenhuma cooperação com os seus congéneres americano e britânico. É que Washington e Londres ainda não tinham recuperado a confiança em relação a um “aliado” que se tinha “portado tão mal” aquando da intervenção militar no Iraque. Além disso, embora com informações concretas, mas incompletas, sobre a existência dessa bomba em mãos fundamentalistas, Londres e Washington tiveram receio de avançar com um aviso, depois de as opiniões públicas se terem revoltado contra o falhanço (ou a mentira descarada) sobre armas de destruição maciça no Iraque de Sadam Hussein.

Já há 25 anos, a dupla Dominique Lapierre e Larry Collins tinham escrito uma novela, depois passada ao cinema, O Quinto Cavaleiro, numa alusão directa ao Apocalipse. Nessa história, o líder líbio, Mohammar Khadafi, envia uma carta chantageando o Governo americano, ameaçando com a explosão de uma bomba atómica no coração de Nova Iorque.

Um 11 de Setembro nuclear? Perante esta hipótese aterradora, o director da agência atómica da ONU, o argentino Abel Gonzalez, parece dar razão ao plausível que pode ser o quadro descrito n’O Quinto Cavaleiro ou por Timothy Garton Ash para apenas daqui a cinco anos. (2)

Segundo ele, a chamada bomba suja, a sinistra combinação entre explosivo convencional e conteúdo altamente radioactivo (não necessariamente o plutónio ou o urânio enriquecido essenciais para fabricar uma bomba nuclear clássica), constitui uma ameaça relativamente fácil de se converter em realidade, a qualquer momento, por um grupo terrorista.

Aliás, Gonzalez garante que os rebeldes chechenos chegaram mesmo a colocar uma bomba suja em Moscovo, em 1996. Mas não a fizeram explodir. Nessa altura, estavam a ganhar a guerra aos russos, e aquilo era apenas uma demonstração de força.

Quando a URSS implodiu, em 1991, a Rússia e outros países herdaram um imenso potencial atómico, de uso civil e militar, sobretudo a de milhares de fontes radioactivas utilizadas na indústria, há muito impossíveis de localizar e contabilizar. Ninguém sabe muito bem quem controla o quê, o que põe os Estados Unidos e o Ocidente em geral muito nervosos.

No florescente mercado negro nuclear criado a partir do caos soviético (não esquecer que as colónias de Moscovo estavam nas suas fronteiras, e em parte são hoje Estados islâmicos independentes) o próprio Ocidente (ou algumas das suas empresas) entrou no jogo, exportado material passível de uso nuclear para países párias.

Nos últimos meses, e depois de a Líbia ter admitido um programa nuclear e de se ter comprometido a desistir dele, o Ocidente foi sabendo que o pai da bomba atómica paquistanesa cedeu o seu saber não só à Líbia como à Coreia do Norte. Ou que dois outros cientistas nucleares paquistaneses se terão reunido com Bin Laden, antes do 11 de Setembro, para estudar a possibilidade de a Al Qaeda se munir de uma bomba.

Para os países árabes, o arsenal nuclear israelita é como que uma ferida permanentemente aberta, demonstrando aos seus olhos o critério viciado com que Washington encara a proliferação nuclear.

Para o egípcio Mohamed el Baradei, que dirige a Organização Internacional de Energia Atómica, nunca como agora foi tão elevado o risco de utilização de armas nucleares. Em A guerra mundial em curso, José Pacheco Pereira faz notar: “A primeira diferença de discurso entre os EUA e parte dos países da UE, surgida imediatamente depois do 11 de Setembro, ainda tudo estava a quente e as proclamações de solidariedade sucediam-se, parecia ser de natureza semântica. Os dirigentes americanos disseram, ‘estamos em guerra’ e os europeus evitaram cuidadosamente a utilização dessa palavra”. (3)

Tudo o que até aqui se citou foi escrito antes do 11 de Março. Os atentados de Madrid deverão fazer pensar a Europa sobre se, afinal, está ou não no meio de uma guerra, como diagnosticado em Washington desde 11 de 2001. Pacheco Pereira fala do perigo, deste lado do Atlântico, de uma “apatia resignada”. E diz que, “se, por acaso, os terroristas fundamentalistas ganham esta guerra, o século XXI será uma sucessão impiedosa de mortes”.

Arriscamos, para já, um efeito colateral do 11 de Março em Madrid: o adiamento para as calendas gregas (mais uma vez) do processo de adesão da Turquia à União Europeia.

Apesar de sete em cada dez turcos desejar a entrada no clube europeu, como explicar às opiniões públicas (tão traumatizadas com a imagem de um Islão terrorista, ainda que minoritário) o acquis de 70 milhões de cidadãos islâmicos, ainda por cima com taxas de natalidade muito superiores às do Ocidente? Se entrasse, Ancara passaria a representar o segundo maior Estado da União. Até agora, apenas o político francês Valery Giscard D’Estaing teve a coragem de dizer em público aquilo que a maioria se atreve a dizer em privado nos corredores de Bruxelas: a Turquia não é Europa, nem tem uma cultura europeia ou ocidental.

Perante a guerra santa que lhe tem sido declarada pela Al Qaeda e por outras organizações islâmicas, não há o perigo de o Ocidente dar força a sectores marginais, eles por sua vez imbuídos do espírito de cruzada? Vasco Pulido Valente detecta “um fervor, que alastra, pelos velhos valores do Ocidente” (4). Para ele, “à primeira vista parece que, perante a ameaça do Islão, a Europa e a América redescobrem o seu fundamentalismo e que pouco a pouco reentramos numa era de fanáticos”. Quadro inverosímil? “Quem acreditou nos desastres do século passado? A tempo, quase ninguém”.

Mas a combinação 11 de Setembro – 11 de Março terá feito o Ocidente, como um todo, aperceber-se de que, afinal, está mesmo em guerra. E que este é apenas o início de um conflito que se adivinha longo e penoso.

1 – El Pais, 8 de Fevereiro de 2004
2 – El Pais, 15 de Fevereiro de 2004
3 – PÚBLICO, 4 de Março de 2004
4 – Diário de Notícias, 27 de Fevereiro de 2004

*Jornalista e investigador

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