Est. June 12th 2009 / Desde 12 de Junho de 2009

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sábado, 4 de junho de 2011

O relógio de bolso em ouro - uma crónica do Embaixador Francisco Seixas da Costa

O actual Embaixador português em Paris, Francisco Seixas da Costa, mantém um blog, duas ou três coisas, onde fala de tudo um pouco, num estilo elegante e mordaz. Somos leitores assíduos dos posts do Embaixador que, esperamos, venham um dia a ser transformados em livro.

Num dos mais recentes, e sob o título "O relógio", recorda uma figura do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Melo, que tinha um relógio de bolso de que nunca se separava. Transcrevemos aqui o delicioso texto:

O Melo era aquilo a que agora se chama um cromo. Projetava uma imagem caricatural do diplomata: sempre de fato com colete, de onde sobressaía a corrente de ouro do relógio de bolso. Como tique, tinha por hábito dar lustre nas calças ao brasão que trazia no anel. Falava de forma pausada, mimando o estilo que ele admirava em vetustas figuras da carreira, vindas de um tempo a cujos sinais exteriores ficara fiel. Velho conselheiro já sem hipóteses de promoção ou de chefia de missão, arrastava agora a sua consabida calaceirice por um posto onde fora colocado contra a vontade expressa do embaixador. Este pagava-lhe com uma atitude de permanente ironia e desprezo. Porque era um pouco tonto, o Melo parecia não perceber que era regularmente gozado pelo seu chefe.

Uma tarde, na embaixada, foi chamado ao gabinete do embaixador. Encontrou-o com um colega mais velho, que tinha vindo de Lisboa, em férias. Tratado o breve expediente, o embaixador perguntou-lhe:

- Ó Melo, você tem horas certas?

O conselheiro sacou, com orgulho, do seu velho e valioso relógio de bolso, preso pela ostensiva corrente de ouro. E esclareceu o embaixador. Este voltou à carga, dirigindo-se para o colega de Lisboa:

- Tu queres saber que o nosso Melo nunca muda a hora no relógio?!

Perante o espanto afivelado pelo embaixador visitante, o Melo, sorridente, voltou a tirar o relógio, explicando que, de há muito, decidira não proceder aos acertos horários, ao longo do ano, para evitar forçar o delicado mecanismo do velho relógio. E lá mostrou que, precisamente, tinha então a hora errada.

- É verdade que estes relógios ingleses são frágeis, comentou o chefe do posto.

O Melo reagiu. Não, o relógio era americano! Retirou-o, uma vez mais, do bolso do colete e mostrou a marca, a ambos os embaixadores. E preparava-se para sair quando o seu superior hierárquico, com alguma ironia, lhe lançou:

- Ó Melo, eu perceberia o seu cuidado, se o relógio fosse de ouro, mas assim...

O conselheiro, que herdara o precioso relógio de ouro da família, reagiu e, retirando-o de novo do bolso, mostrou o contraste, sobre o qual deu algumas explicações, que pouco pareceram interessar aos seus interlocutores. E foi saindo. Estava já prestes a fechar a porta, por fora, quando ouviu o seu chefe dizer para o embaixador visitante:

- Aquele relógio do Melo não é nada mau. O que é pena é que não tenha ainda ponteiro dos segundos. Mas percebe-se, é de outro tempo.

O Melo, contudo, ainda tinha ouvido o comentário. Reabriu a porta, pediu desculpa e mostrou, à evidência, que o seu embaixador estava errado: o seu relógio marcava os segundos. E saiu.

O conselheiro não testemunhou a "barrigada de riso" que invadiu ambos os embaixadores. E, em especial, a frase do seu chefe:

- Eu não te dizia que o tipo sacava do relógio, pelo menos cinco vezes?! Com jeito, ainda tinham sido algumas mais...

Esta história foi-me contada, há cerca de um quarto de século, por um embaixador. Já não conheci o "Melo", nem qualquer os outros protagonistas. Longos anos houve em que era possível a subsistência de algum autoritarismo nas relações hierárquicas, dentro das nossas missões diplomáticas. Eram outros tempos, embora eu ainda tenha encontrado alguns "Melos", pelos corredores das Necessidades.

Estação Cronográfica gostaria de saber a marca exacta e a época de fabrico do referido relógio. E o texto suscita-lhe três observações:

- Os relógios mecânicos mais exactos alguma vez produzidos, os cronómetros de marinha, nunca são acertados, nem sequer têm dispositivo (coroa) para isso - são mantido a funcionar ininterruptamente e as leituras que deles se fazem levam em conta o adiantamento ou atraso do mecanismo, no que se chama "o estado do cronómetro".

- A corda dos relógios de bolso era feita através de chave e o acerto feito à mão, até que a Patek Philippe apresentou, em 1839, a coroa - dispositivo que tem as duas funções em simultâneo.

- A observação sobre o relógio não ter ponteiro dos segundos é exacta para a relojoaria média (de mesa, de parede ou de caixa alta) ou grossa (de torre, neste último caso, até o ponteiro dos minutos era supérfluo nos séculos XIV, XV ou XVI, dada a imprecisão das máquinas), mas não faz muito sentido para a relojoaria fina (de bolso e de pulso), já que o orgão regulador aqui utilizado (composto por escape, roda de escape e âncora) leva directa e naturalmente a uma leitura dos segundos. Colocá-los ou não no mostrador seria uma questão de estética. O personagem que assim falou deveria estar a pensar nos chamados Ovos de Nuremberga, os primeiros relógios portáteis, inventados a partir do início do século XVI, que usavam um tipo de escape muito rudimentar, e que começaram por ter apenas ponteiro das horas, depois dos minutos, e nunca tiveram ponteiro dos segundos. Só a teorização das regras do pêndulo e a sua aplicação à relojoaria média e grossa, por um lado; e a invenção do balanço/espiral na relojoaria fina, por outro, tornaram os segundos possíveis de medir e mostrar.

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