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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Encontrada meridiana quinhentista em madeira






É um pequeno objecto em madeira, de 4,5 x 4 cm. Foi encontrado no final do século passado em trabalhos arqueológicos no Largo do Corpo Santo, na Lisboa ribeirinha. Mas só agora a identificámos – trata-se da base de um relógio de sol portátil, o mais antigo do seu género de que temos conhecimento no país.

Esta meridiana, nome por que é conhecido o tipo de relógio de sol em causa, chegou aos nossos dias com a madeira praticamente intacta porque esteve durante mais de 500 anos debaixo de água.

Está incompleta, já que lhe falta, no centro, uma bússola (material ferroso rapidamente deteriorado). E, para completar o conjunto, havia também uma tampa, de que ainda há na base os sinais de ligação. Essa tampa deveria ser também em madeira, e serviria para gravar no interior uma tabela com nomes das cidades mais importantes da Europa, com as respectivas latitudes. Um fio, preso à tampa e a um ponto da base (de que há também vestígios no objecto achado) serve neste tipo de relógios como gnómon, para projectar a sombra do Sol.

A base, cujo centro escavado servia de assentamento para a bússola, tem gravados algarismos árabes, vendo-se claramente, da esquerda para a direita, o “0” de 10, e depois “11”, “12”, “1”, 2”, “3”, “6”, “8” e “9”. Os números “4” e “7” estão escritos de forma hesitante, demonstrando a antiguidade do objecto. Os algarismos árabes, incluindo o “zero”, foram introduzidos na Europa científica a partir de Itália, no século XII, por Leonardo Fibonacci, mas só lentamente começaram a substituir a grafia da numeração romana no quotidiano ocidental. A base da meridiana em madeira encontrada no Corpo Santo ainda apresenta uma grafia não fixada dos algarismos árabes. “Apesar de os algarismos árabes terem sido usados ocasionalmente pelos europeus desde o século XIV, só no princípio do século XVII começou a generalizar-se na Europa, incluindo Portugal”, refere-nos o matemático Nuno Crato. Isto poderá significar que a meridiana do Corpo Santo terá vindo de Itália, como o material cerâmico encontrado no local.

No quadrante da meridiana encontram-se ainda marcações que deverão indicar pontos de acerto deste relógio de sol portátil. Depois de achado o Norte, através da bússola, o utilizador deveria acertar o objecto para o local onde se encontrava, mediante a latitude que sabia ou que iria consultar na tabela da tampa.
Os relógios de sol foram introduzidos na Península Ibérica pelos romanos, havendo alguns exemplares encontrados no território português. Depois disso há um enorme hiato, durante as ocupações bárbara e islâmica, não se tendo encontrado até hoje qualquer exemplar desses períodos. O relógio de sol volta a aparecer no período românico, adjacente a mosteiros e igrejas. Mas nunca como relógio de sol portátil. A meridiana do Corpo Santo, possivelmente datada do fim do século XV ou início do século XVI, é pois o mais antigo relógio de sol portátil encontrado até hoje no país.

A escavação do Largo do Corpo Santo, dirigida por Clementino Amaro, e com os arqueólogos Ana Vale e João Marques, foi efectuada devido à necessidade de construir um poço de ventilação para o Metropolitano de Lisboa. A área a escavar correspondia a uma circunferência, com cerca de 15 metros de diâmetro, no canto nordeste do parque de estacionamento, encostado ao edifício da Marinha.

Os trabalhos arqueológicos no Largo do Corpo Santo, em Lisboa, iniciaram-se em Janeiro de 1996. Imediatamente sob a superfície foram detectadas as estruturas pertencentes às oficinas de serralharia do Arsenal da Marinha, destruídas já neste século, para a construção do parque de estacionamento. Depois de liberta a área de escavação destas estruturas recentes, começaram a aparecer pavimentos e paredes pertencentes ao Palácio dos Côrte-real, cuja edificação data de 1585. A escavação sob os pavimentos revelou que estes assentavam num grande aterro onde abundam os óxidos de ferro e cinzas, possivelmente provenientes das ferrarias aí instaladas no início do século XVI. Teriam sido eventualmente danificadas pelos terramotos de 1531 e 1551 que, segundo os relatos, atingiram duramente a zona ribeirinha de Lisboa. Os seus despojos terão sido utilizados para criar um aterro sobre a praia, destinado à construção do novo e grandioso palácio de D. Cristóvão de Moura, casado com D. Margarida de Côrte-real. O Palácio dos Côrte-real, também conhecido como Palácio do Marquês de Castelo Rodrigo, sofreu um incêndio em 1751, ficando irrecuperável com o terramoto de 1755.

O material escavado no aterro inclui algumas peças de qualidade excepcional, como as primeiras majólicas importadas do centro de Itália, remontando a sua cronologia ao séc. XV e XVI. A meridiana em madeira foi recolhida num nível junto à praia, ou seja, na base do aterro referido, podendo assim datar-se do final do século XV ou início do XVI.

Versão de artigo publicado em Cronos - Pilares do Tempo, suplemento do Público de 16 de Maio de 2009.

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