sexta-feira, 3 de maio de 2024

Meditações - fusos horários...

A tarde sem fim


Na estação de helsínquia, onde lenine esperava

 

o comboio do regresso, dou comigo,

 

por entre máquinas de jogo e copos de cerveja, a invejar

 

o bêbedo que abraça a rapariga gorda, de cabelos

 

longos e saia curta; e riem-se, como se o amor

 

se servisse naquele bar de consumo rápido, por entre

 

os comboios que partem e os que chegam. A esta

 

hora — o meio da tarde do verão finlandês - com o

 

calor que ainda entra pelas grandes portas

 

da estação de helsínquia, ouço a voz desse poeta

 

que sonhou todos os rostos que se perdem e se

 

encontram em todas as estações do mundo. No seu relógio,

 

a hora da patagónia confunde-se com a hora de são

 

petersburgo; a hora solar cai no centro da alma

 

que anda ao contrário, como o relógio do bairro

 

judeu de praga; e o poeta puxa as garrafas para

 

a sua frente, no balcão, para que os gestos bruscos do

 

bêbedo que se abraça à rapariga gorda não as façam

 

cair, sujando o lugar em que, no princípio deste

 

século que vai acabar como começou, lenine esperava

 

o comboio do regresso. É então que uma procissão de

 

cantores loucos atravessa o átrio; que as suas vozes

 

se juntam para invocar a santa joana dos abismos;

 

que um silêncio nasce, em volta do rapaz estendido

 

no chão, que agita o corpo nos sobressaltos sonâmbulos

 

do álcool. Por vezes, lenine sai da sua mesa para

 

espreitar esse corpo; os viajantes olham-no das janelas,

 

chamando-o de dentro do seu sono; e as mulheres

 

choram, lentamente, de trás dos balcões de vidro, como

 

se sentissem apodrecer as raízes da sua juventude. Talvez

 

seja por isso que esse poeta partiu; e que neste balcão

 

onde o bêbedo e a rapariga gorda se abraçavam, todos os

 

copos estejam vazios, como se o mundo inteiro os tivesse

 

bebido até ao fundo, na tarde sem fim de helsínquia.

 

 

Nuno Júdice , in Teoria Geral do Sentimento, Quetzal

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