sábado, 15 de janeiro de 2022

Meditações - ouvi pelo tabique o toque do relógio

 Cheguei ao fim. Andei de pé descalço

 sobre os calhaus do rio, senti

 a água fria, as vozes de outro

 lado. Ergui-me na cisterna, ouvi

 pelo tabique o toque do relógio

 e desci noutra casa, ao longe,

 a escada estreita. Mas sempre

 em tudo isso sentei-me na cadeira.

 

Deslustrei a fama que me deram,

 Soluçei os soluços que passei

 com risos importunos. Abri mão

 dos trunfos que os anos me dariam

 se os olhos pudessem reabrir-se.

 As músicas tocaram, mas falei

 de arremedos sortidos, da beleza

 da mão com sardas brunas, e vazia.

 

Matei-me esfarelado, e hesitei

 entre a folha da agenda e a falha

 geológica. Puxei cordas diversas

 e alterei assim o rumo dos teus olhos

 com a vela que os vela. Sou ainda

 o feto minutado que o planeta quis

 no país, no país, no campo e na cidade,

 entre dentes e datas, azar de bruxaria.

 

Vário, variei. Pra trás e pra diante

tropecei, empecilho, no teu entendimento.

Vim dos poentes tensos, rapidíssimos,

sobre a terra crestada de moléstia,

vazio de uniforme e de uma carta a chegar.

Engrossei a gravata, fiz sorriso

da careta que a alma me ditou,

pontuei o discurso. __ Vindimei.

 

Andei de flor em flor nos intervalos

de cantar muito a sério que sem asas

é na cadeira que tenho de sentar

o cu dorido de toda a eternidade:

e a mão, a mesma, a mão direita

mas sinistra, passa do corrimão

para a caneta, a preta, não descreve,

e escreve. Páro de percorrer.

 

Discorro.__ Mais: decorro, e sem saber

de que novelo saio.

Por sobre o ombro (dói!) lobrigo

tantas confusas coisas, falo delas.

Colo então à própria vista a escrita,

o peso, o contrapeso, a palavra que digo.

Sufoco o medo a medo, e olho a esteira

remudo e quedo, sentado na cadeira.

 

Pedro Tamen, in “Memória Indescritível”, Editora Gótica, Lisboa, 2000

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