quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Meditações - aquele que não cresceu dos relógios do mundo

[...] As mãos esgueiram-se para dentro da insónia. eis a noite da noite onde abro e folheio livros, ouço murmúrios, crescem líquenes, exalam-se perfumes a tinta fresca, desprendem-se sílabas de vidro. eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. e aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. aceito, aceito como único calor o da tâmara crescendo no deserto. aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. aceito como única noite a das searas do fundo do mar. aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro. aceito a humildade de viver sozinho, a vergonha dos desejos insatisfeitos, a noite que me devora, aceito, aceito estas paredes, estes objectos, este sol, esta varanda, este mar, estes braços, estas mãos, este sexo, estes dedos, aceito, aceito, estes peixes de enxofre estatelados sobre a mesa, estas visões de catástrofe, estes sonhos premonitórios, estas luzes surgindo na pele, aceito, esta dor que me morde, esta escrita, este coração, estas doenças, estes cabelos, a escassez da fala, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito, aceito, aceito esta janela, esta música de vísceras, esta faca, este sussurro, esta ausência, esta imagem desfocada, esta gravata adolescente, este sismo, este grito, estas coxas sujas de esperma, esta comida, estes cigarros, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa, aceito, aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer, de fugir, de esperar, aceito, aceito a inutilidade de me reconhecer e de amar, a inutilidade dos dias, aceito, aceito o marulhar lodoso da alma, aceito não ter projectos nem querer construir uma pátria, aceito, aceito o vazio imenso das algibeiras, a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito o caos e esta mosca que não encontra saída e morre no calor da lâmpada, aceito, aceito estes ossos, esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito a tristeza que me ofereces, a pouca água que me é necessária, aceito, aceito nunca mais me lembrar de mim e viver pobre, aceito nunca mais te tocar nem acreditar em deus, aceito, aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais. [...]

Al Berto, in O Medo

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