[...] As mãos esgueiram-se para dentro da insónia. eis a noite da noite onde abro e folheio
livros, ouço murmúrios, crescem líquenes, exalam-se perfumes a tinta fresca, desprendem-se sílabas
de vidro. eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. e aceito como
único presságio a melancolia aérea das açucenas. aceito como único consolo a desolação imensa dos
teus braços. aceito, aceito como único calor o da tâmara crescendo no deserto. aceito como único
vício aquele cuja pele ainda não toquei. aceito como única noite a das searas do fundo do mar. aceito
como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. aceito como único corpo aquele
que não cresceu dos relógios do mundo. aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te
reflectes e me encontro. aceito a humildade de viver sozinho, a vergonha dos desejos insatisfeitos, a
noite que me devora, aceito, aceito estas paredes, estes objectos, este sol, esta varanda, este mar, estes
braços, estas mãos, este sexo, estes dedos, aceito, aceito, estes peixes de enxofre estatelados sobre a
mesa, estas visões de catástrofe, estes sonhos premonitórios, estas luzes surgindo na pele, aceito, esta dor que me morde, esta escrita, este coração, estas doenças, estes cabelos, a escassez da fala, este
silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos
esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito, aceito, aceito esta janela, esta música de
vísceras, esta faca, este sussurro, esta ausência, esta imagem desfocada, esta gravata adolescente, este
sismo, este grito, estas coxas sujas de esperma, esta comida, estes cigarros, estes cadernos rabiscados
que não servem para grande coisa, aceito, aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me
deslocar, de permanecer, de fugir, de esperar, aceito, aceito a inutilidade de me reconhecer e de amar,
a inutilidade dos dias, aceito, aceito o marulhar lodoso da alma, aceito não ter projectos nem querer
construir uma pátria, aceito, aceito o vazio imenso das algibeiras, a dor das mãos percorrendo um
corpo, aceito o caos e esta mosca que não encontra saída e morre no calor da lâmpada, aceito, aceito
estes ossos, esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente,
indefeso, aceito a tristeza que me ofereces, a pouca água que me é necessária, aceito, aceito nunca
mais me lembrar de mim e viver pobre, aceito nunca mais te tocar nem acreditar em deus, aceito,
aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais. [...]
Al Berto, in O Medo
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