Naquela fria e sombria manhã de Inverno, do ano de 1967, estava à porta da “Livraria Silva”, na Praça de Sé, quando passa, de reluzentes divisas doiradas, o sargento Mário.
Homem de lábios grossos, estatura meã, rosto levemente queimado pelo abrasador sol de Bragança, que descia, despreocupado, em direção ao velho: “Chave Douro”.
Cumprimentei-o com cortesia, curvando levemente o busto, lançando afetuoso e quase imperceptível: “bom-dia! …” Estacou. Mirou-me de cima a baixo, tomando expressão de espanto:
- Então ainda por aqui!? Pensei que estava no Porto?! …
- Parto dentro de horas, na automotora…Aproveito para examinarem o relógio. Dei-lhe corda…e nada! … - Disse, mostrando-o, na palma da mão.
Caía neve miudinha. Fazia vento gelado, vindo da Sanábria, que cortava impiedosamente a epiderme. O céu era sombrio, cor de cinza.
Deambulavam, melancólicos, pela Praça, vultos rebuçados, no aconchego de lúgubres gabões, arrastando e sulcando, a lentos passos, a fofa neve, que tudo embranquecera, em grosso rolão, na enregelada madrugada.
A cidade mergulhara em misterioso silêncio; dir-se-ia, que, a passarinhada, tolhida pela friagem, emudecera nessa triste manhã de Inverno.
Pouco depois, segurando a velha mala de cartão endurecido, comprada na Baviera, acomodava-me na automotora, a caminho do Tua.
Apressei-me a visitar a pequena relojoaria, que ficava nas cercanias da Sé do Porto. Mirou-o com ar de entendido.
Entalou a potente lente, sem aro, nas pestanudas pálpebras, e levou-o para a banca de trabalho, escarafunchando o mecanismo.
Decorridos escassos minutos, o Senhor Júlio – relojoeiro da família, – entrega-me, o relógio, com o tic…tac… bem cadenciado.
Por delicadeza, perguntei-lhe, quanto lhe devia. E quando aguardava aperto de mão, e indicação, que nada era. Este, com rosto cheio de risos, declarou:
- Apenas cinco escudinhos…
Regressei amuado: cinco escudos, por cinco minutos! …
Já embarcado, no velho comboio do Douro, ainda remoía, indignado, o “atrevimento” do descarado relojoeiro.
O tempo passou. Decorreram mais de cinco décadas. Envelheci, sem dar por isso; e descobri o “atrevimento” ou a “sovinice” do pobre relojoeiro.
Ao ler Cruz Malpique, em: “Vocação e Profissão “, encontrei o episódio, entre Vernet, pintor francês, e o dono de célebre cavalo de corrida.
Recebera o pintor encomenda de retratar o magnífico cavalo. Vernet completou a obra em dez sessões! …
Concluída, pediu: cinquenta mil francos…
- Cinquenta mil francos, por dez sessões?! - Disse o dono do cavalo.
- Não. - Retorquiu, empertigado, o pintor. - Nesta obra está o que aprendi durante quarenta anos! …
Humberto Pinho da Silva, no portal O Debate
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