sábado, 2 de maio de 2015

Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"


Leituras acidentais de um ocidental. Décima terceira crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Maio de 2005.

Fernando Correia de Oliveira*

Duas ideias para “vender” a Europa

Domingo de Páscoa chuvoso, cinzento, em Estrasburgo. De manhã, atraídos pelo coro de sinos assinalando a Ressurreição de Cristo, uma ronda pelos templos protestantes que abundam na cidade – em todos, a liturgia inclui coros, agrupamentos musicais, um ambiente festivo, determinado. Num deles, a cerimónia é transmitida em directo para a vizinha região da Alemanha.

À hora de almoço, a obrigatória visita à Catedral de Nossa Senhora de Estrasburgo, um dos mais espectaculares exemplos do Gótico. Na praça da Catedral, centenas de turistas, na maioria asiáticos, apreciam o rendilhado hipnótico da pedra, compram camisolas, postais, provam a comida de rua.

O que ali nos trouxe foi uma investigação ao Relógio Astronómico, um dos mais célebres do mundo. Num ecrã plano, de cada lado da nave central, anunciava-se: “Hoje, pelas 15h00, Concerto de Páscoa – Entrada Livre”.

Com a chuva e o vento a convidarem ao recolhimento, que melhor programa para a tarde? A Catedral tinha fechado as suas portas para almoço, mas às 13h30 já se concentravam no local dezenas de pessoas, a maioria forasteiros, para garantirem um lugar. Pelas 14h30, abertas as portas, foi o assalto aos mais de mil lugares sentados – os japoneses estavam em maioria.

E, depois, o concerto. A luz coada pelos vitrais, a acústica doce, o cheiro a incenso acabado de queimar na missa que tinha ocorrido horas antes, as vozes do coro, os instrumentos, o maestro no seu apaixonado gesticular – a entrada garantida para duas horas de sonho.

O Junge Kammerchor Baden-Wurttemburg e a orquestra Arpa Festante, de Munique, sob a direcção do maestro Jochen Woll interpretaram obras barrocas de Marc-Antoine Charpentier e Georg-Friedrich Haendel. Intérpretes alemães, numa catedral católica francesa, perante uma audiência de variegadas nações.

Foi quando soaram os primeiros acordes do Te Deum laudamus para coro e orquestra em do maior H 146, de Charpentier, que a interrogação nos surgiu, que a ideia foi sendo elaborada – que sentimento era aquele que nos atingia, se não o de sermos europeus? Este Te Deum de Charpentier, composto no início dos anos 1690 para a Igreja de São Luís dos Jesuítas, em Paris, é a sua obra mais famosa, especialmente devido ao seu prelúdio, escolhido como indicativo das transmissões televisivas da Eurovisão desde os anos 50 do século passado.

Numa altura em que a Europa está sem líderes que transportem o seu ideal, numa altura em que o processo de ratificação da sua nova Constituição pode esbarrar já dentro de um mês no “não” francês, num momento em que o Continente parece não conseguir responder aos desafios da Globalização e da liderança monopolista norte-americana, em que poderia ajudar à construção da Europa um Te Deum de Charpentier?

Há muito que se diz que os cidadãos europeus estão cada vez mais afastados da classe política dos respectivos países, e ainda mais afastados do processo de construção da Europa. O processo de criação da nova Constituição não deveria ter passado pela criação de uma Assembleia Constituinte?

Como incentivar o sentimento de pertença a uma União? A eterna linguagem dos símbolos poderia ajudar, sem grandes custos adicionais.

Porque é que aos hinos nacionais dos actuais 25 Estados membros se não acrescenta, no início ou no fim, um trecho comum? Poderia ser o Hino à Alegria, de Beethoven, que já é o Hino da Europa. Mas poderia ser também um acorde do Te Deum de Charpentier.

Assim, de cada vez que um hino nacional da União fosse executado, haveria sempre a “intromissão” do factor Europa no quotidiano dos cidadãos.

E, já agora, porque é que os elementos da bandeira da União – o fundo azul e as 12 estrelas amarelas – não são acrescentados, de forma graficamente uniforme, às bandeiras nacionais? A colocação a um canto, o rodear total…

Imagine-se qual seria o efeito, por exemplo, nuns Jogos Olímpicos, desta simbologia uniformizada da UE, projectada nos hinos e nas bandeiras. E se os uniformes das selecções nacionais, em qualquer desporto, passarem a ostentar “sinais” europeus? Em tempo de vagas magras, de desencanto (e decadência, porque não dizê-lo), são medidas simbólicas como estas, simples mas eficazes, que costumam dar resultados, galvanizar sentimentos de pertença, que são depois dirigidos com efeitos multiplicadores para a área do ensino, do trabalho, da economia, das artes.

Claro que alguns militantes do “politicamente correcto” acharão pouco próprio que uns acordes de um Te Deum possam servir de símbolo à Europa, preferindo rejeitar uma herança histórica inegável e abraçar antes um multi-culturalismo nebuloso, que será sempre anti-Ocidental e anti-Europeu, mesmo que os mais cegos o não queiram ver… Uma Europa orgulhosa do seu todo, protagonizada pelas suas gerações mais novas, precisa desta simbologia comum. Experimentem ouvir os primeiros acordes do Te Deum de Charpentier, mesmo que não seja na mágica Catedral de Estrasburgo, e vejam se não se sentem um pouco mais europeus…

*Jornalista e investigador

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