segunda-feira, 29 de maio de 2023

Meditações - do tempo que há de vir, das velhas eras

Relógio do Rosário

 

Era tão claro o dia, mas a treva,

do som baixando, em seu baixar me leva

 

pelo âmago de tudo, e no mais fundo

decifro o choro pânico do mundo,

 

que se entrelaça no meu próprio chôro,

e compomos os dois um vasto côro.

 

Oh dor individual, afrodisíaco

sêlo gravado em plano dionisíaco,

 

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,

em qualquer um mostrando o ser deserto,

 

dor primeira e geral, esparramada,

nutrindo-se do sal do próprio nada,

 

convertendo-se, turva e minuciosa,

em mil pequena dor, qual mais raivosa,

 

prelibando o momento bom de doer,

a invocá-lo, se custa a aparecer,

 

dor de tudo e de todos, dor sem nome,

ativa mesmo se a memória some,

 

dor do rei e da roca, dor da cousa

indistinta e universa, onde repousa

 

tão habitual e rica de pungência

como um fruto maduro, uma vivência,

 

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,

nas caudas titilantes, nos arminhos,

 

dor do espaço e do caos e das esferas,

do tempo que há de vir, das velhas eras!

 

Não é pois todo amor alvo divino,

e mais aguda seta que o destino?

 

Não é motor de tudo e nossa única

fonte de luz, na luz de sua túnica?

 

O amor elide a face... Ele murmura

algo que foge, e é brisa e fala impura.

 

O amor não nos explica. E nada basta,

nada é de natureza assim tão casta

 

que não macule ou perca sua essência

ao contacto furioso da existência.

 

Nem existir é mais que um exercício

de pesquisar de vida um vago indício,

 

a provar a nós mesmos que, vivendo,

estamos para doer, estamos doendo.

 

Mas, na dourada praça do Rosário,

foi-se, no som, a sombra. O columbário

 

já cinza se concentra, pó de tumbas,

já se permite azul, risco de pombas.


Carlos Drummond de Andrade

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