domingo, 13 de novembro de 2022

Meditações - o relógio da amizade

O RELÓGIO DA AMIZADE

Em cada relógio há sempre um amigo

que nos acorda, que suavemente nos percorre

os interstícios da alma, que nos assombra

com sinais discretíssimos de fraterna luz

ou que nos deixa, mesmo em minuto frágil,

um arco triunfal com tâmaras de afecto.

Nesse relógio há um lírio comestível

ou uma plena árvore com seus braços

de deslumbre, ou a mais ínfima erva

que por ele sobrevive à estrondosa queda

do granizo, à dissolução (inevitável) de casas

e areias, e mesmo ao advento da loucura.

É sempre tal relógio um rio profundo

onde a cor dum sol cheio, tantas vezes

reposto, tantas vezes presente em acenar

de címbalos e de búzios, pode acordar

em tons de uma aridez sombria, pode

deixar-nos tristes, sós e desolados,

numa gruta de horror frente ao deserto

- num recanto de sono e desalento.

Nesse amigo de sempre, um tal relógio

- com seus ponteiros de murta ou de veludo,

que saltam como lebres sobre as horas

ou são nichos de abrigo e cestos de avelãs –

é puro movimento e azul que estremece

o fio de cada dia, o voo do coração.

Mesmo em zonas de fogo e exaltação,

nesses lugares de praia mais sensíveis

(como o esplendor do corpo em combustão,

como o fremir da vaga e do desejo),

existe tal relógio, ó engrenagem mágica,

ó tiquetaque nítido, tão cúmplice.

João Rui de Sousa

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