quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Meditações - o que devo à eternidade

Momento de Poesia

 

Se me ponho a trabalhar

e escrevo ou desenho,

logo me sinto tão atrasado

no que devo à eternidade,

que começo a empurrar pra diante o tempo

e empurro-o, empurro-o à bruta

como empurra um atrasado,

até que cansado me julgo satisfeito;

e o efeito da fadiga

é muito igual à ilusão da satisfação!

Em troca, se vou passear por aí

sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,

compreendo tão bem o que não me diz respeito,

sinto-me tão chefe do que é fora de mim,

dou conselhos tão bíblicos aos aflitos

de uma aflição que não é minha,

dou-me tão perfeitamente conta do que

se passa fora das minhas muralhas

como sou cego ao ler-me ao espelho,

que, sinceramente não sei qual

seja melhor,

se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,

se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

Almada Negreiros

Sem comentários:

Enviar um comentário