quinta-feira, 29 de julho de 2021

Pedro Tamen (1934 - 2021) - ouvi pelo tabique o toque do relógio

Cheguei ao fim. Andei de pé descalço

sobre os calhaus do rio, senti

a água fria, as vozes de outro

lado. Ergui-me na cisterna, ouvi

pelo tabique o toque do relógio

e desci noutra casa, ao longe,

a escada estreita. Mas sempre

em tudo isso sentei-me na cadeira.

 

Deslustrei a fama que me deram,

Soluçei os soluços que passei

com risos importunos. Abri mão

dos trunfos que os anos me dariam

se os olhos pudessem reabrir-se.

As músicas tocaram, mas falei

de arremedos sortidos, da beleza

da mão com sardas brunas, e vazia.

 

Matei-me esfarelado, e hesitei

entre a folha da agenda e a falha

geológica. Puxei cordas diversas

e alterei assim o rumo dos teus olhos

com a vela que os vela. Sou ainda

o feto minutado que o planeta quis

no país, no país, no campo e na cidade,

entre dentes e datas, azar de bruxaria.

 

Vário, variei. Pra trás e pra diante

tropecei, empecilho, no teu entendimento.

Vim dos poentes tensos, rapidíssimos,

sobre a terra crestada de moléstia,

vazio de uniforme e de uma carta a chegar.

Engrossei a gravata, fiz sorriso

da careta que a alma me ditou,

pontuei o discurso. __ Vindimei.

 

Andei de flor em flor nos intervalos

de cantar muito a sério que sem asas

é na cadeira que tenho de sentar

o cu dorido de toda a eternidade:

e a mão, a mesma, a mão direita

mas sinistra, passa do corrimão

para a caneta, a preta, não descreve,

e escreve. Páro de percorrer.

 

Discorro.__ Mais: decorro, e sem saber

de que novelo saio.

Por sobre o ombro (dói!) lobrigo

tantas confusas coisas, falo delas.

Colo então à própria vista a escrita,

o peso, o contrapeso, a palavra que digo.

Sufoco o medo a medo, e olho a esteira

remudo e quedo, sentado na cadeira.

 

Pedro Tamen, in “Memória Indescritível”, Editora Gótica, Lisboa, 2000

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