sábado, 3 de julho de 2021

Meditações - já o tempo se habitua

Já o tempo

Se habitua

A estar alerta

Nao há luz

Que nao resista

A noite cega

Já a rosa

Perde o cheiro

E a cor vermelha

Cai a flor

Da laranjeira

A cova incerta

Agua mole

Agua bendita

Fresca serra

Lava a língua

Lava a lama

Lava a guerra

Já o tempo

Se acostuma

A cova funda

Já tem cama

E sepultura

Toda a terra

Nem o voo

Do milhano

Ao vento leste

Nem a rota

Da gaivota

Ao vento norte

Nem toda

A força do pano

Todo o ano

Quebra a proa

Do mais forte

Nem a morte

Já o mundo

Se nao lembra

 

De cantigas

Tanta areia

Suja tanta

Erva daninha

A nenhuma

Porta aberta

Chega a lua

Cai a flor

Da laranjeira

A cova incerta

Nem o voo

Do milhano

Ao vento leste

Nem a rota

da gaivota

ao vento norte

Nem toda

a força do pano

todo o ano

Quebra a proa

do mais forte

nem a morte

Entre as vilas

E as muralhas

Da moirama

Sobre a espiga

E sobre a palha

Que derrama

Sobre as ondas

Sobre a praia

Já o tempo

Perde a fala

E perde o riso

Perde o amor


José Afonso, Já o Tempo se habitua

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