domingo, 23 de maio de 2021

Meditações - Parece que o tempo passa com sua capa vazia

Quem é que sobe as escadas

Batendo o liso degrau?

Marcando o surdo compasso

Com uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinho

Na penumbra da ante-sala?

Por que resmunga sozinho?

Por que não cospe e não fala?

 

Por que dois vermes sombrios

Passando na face morta?

E o mesmo sopro contínuo

Na frincha daquela porta?

 

Da velha parede triste

No musgo roçar macio:

São horas leves e tenras

Nascendo do solo frio.

 

Um punhal feriu o espaço…

E o alvo sangue a gotejar;

Deste sangue os meus cabelos

Pela vida hão de sangrar.

 

Todos os grilos calaram

Só o silêncio assobia;

Parece que o tempo passa

Com sua capa vazia.

 

O tempo enfim cristaliza

Em dimensão natural;

Mas há demônios que arpejam

Na aresta do seu cristal.

No tempo pulverizado

Há cinza também da morte:

Estão serrando no escuro

As tábuas da minha sorte.


Joaquim Cardozo

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