quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditações - o instante a habitar passa invisível

Habitar o tempo 

Para não matar seu tempo, imaginou:

vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;

no instante finíssimo em que ocorre,

em ponta de agulha e porém acessível;

viver seu tempo: para o que ir viver

num deserto literal ou de alpendres;

em ermos, que não distraiam de viver

a agulha de um só instante, plenamente.

Plenamente: vivendo-o de dentro dele;

habitá-lo, na agulha de cada instante,

em cada agulha instante: e habitar nele

tudo o que habitar cede ao habitante.

 

E de volta de ir habitar seu tempo:

ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;

e como além de vazio, transparente,

o instante a habitar passa invisível.

 

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;

matar o tempo, enchendo-o de coisas;

em vez do deserto, ir viver nas ruas

onde o enchem e o matam as pessoas;

pois como o tempo ocorre transparente

e só ganha corpo e cor com seu miolo

(o que não passou do que lhe passou),

para habitá-lo: só no passado, morto.

 

João Cabral de Melo Neto

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