terça-feira, 20 de abril de 2021

Meditações - do tempo que há de vir, das velhas eras

Relógio do Rosário

Era tão claro o dia, mas a treva,

do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo

decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,

e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco

sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,

em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,

nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,

em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,

a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,

ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa

indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência

como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,

nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,

do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,

e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única

fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face… Ele murmura

algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,

nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência

ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício

de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,

estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,

foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,

já se permite azul, risco de pombas.


Carlos Drummond de Andrade

 

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