Nos anos 1630, Descartes elaborou uma série de analogias de
extensão causal entre os movimentos dos relógios mecânicos e os de todos os
corpos naturais, sem excepção, mesmo incluindo os movimentos do corpo humano;
“Vemos que os relógios… e outras máquinas deste tipo, embora tenham sido
construídos pelo homem, nem por isso deixam de poder mover-se por si de várias
formas”.
Porque é que a respiração, a digestão, a locomoção e as
sensações humanas não hão-de ser explicadas da mesma maneira que explicamos os
movimentos de um relógio, de uma fonte artificial ou de um moinho?
Nos anos 1660, o filósofo mecânico Robert Boyle (1627 – 91)
escreveu que o mundo natural era “uma grande peça de relojoaria”. Tal como o
espectacular relógio da catedral de Estrasburgo usou partes mecânicas e
movimentos para mimetizar os complexos movimentos do cosmos (geocêntrico),
também Boyle, Descartes e outros filósofos mecânicos recomendaram a metáfora do
relógio como filosoficamente legítima para compreender como o mundo natural se
compunha e funcionava.
Para Boyle, a analogia entre o universo e o relógio de
Estrasburgo era, além de exacta, correcta: “As várias peças que constituem a
curiosa máquina são tão bem feitas e adaptadas, e colocadas de tal forma em
movimento, que através de numerosas rodas, e outras partes, se move de variadas
maneiras, e isso sem que haja interferência do conhecimento ou desígnio; e no
entanto cada parte desempenha o seu papel de maneira a atingir vários fins,
para os quais estão programadas, tão regular como uniformemente, como se
conhecessem e estivessem preocupadas em cumprir o seu dever”.
Uma série de funções do relógio foram consideradas por
muitos filósofos mecânicos do século XVII como metáforas apropriadas para se
poder compreender a natureza.
Primeiro, o relógio mecânico era um artefacto complexo
desenhado e construído por pessoas, para cumprir funções determinadas por
pessoas e para as pessoas. Embora ele fosse, em si, inanimado, o relógio
imitava a complexidade e os propósitos de agentes inteligentes. Se não se
soubesse que havia um relojoeiro inteligente que determinadamente o pôs a
funcionar, poderia pensar-se que o próprio relógio era inteligente e tinha um
propósito. A popularidade contemporânea dos autómatos – máquinas que imitam
vivamente os movimentos de animais e humanos – também impressionou uma série de
filósofos mecânicos. Que máquinas engenhosamente montadas pudessem enganar
observadores ingénuos e fazê-los acreditar que estavam a ver algo natural e
animado contribuiu para a legitimidade da metáfora mecânica. E, no entanto, uma
coisa que pessoas competentes sabem sobre relógios e autómatos é que eles não
são agentes inteligentes. Assim, o relógio, e mecanismos semelhantes, forneceu
recursos valiosos aos que se preocuparam em fornecer uma alternativa
convincente aos sistemas filosóficos que incluem inteligência e propósito nos
seus esquemas de como a natureza funcionava. As máquinas podem ser semelhantes
a agentes com propósito e podem mesmo substituir o trabalho humano, e essa
semelhança fazia parte do seu poder explicativo. Podia-se ter a aparência de
desígnio complexo e propósito na natureza, se se atribuir desígnio e propósito
à natureza material. Podia haver um ser inteligente no universo colocado na
mesma relação com a natureza que o relojoeiro em relação aos seus relógios, mas
não se podia confundir o produto inanimado da inteligência com a própria
inteligência.
O relógio era também um exemplo da uniformidade e
regularidade. Se os filósofos viam o mundo natural a comportar-se com padrões
ordenados de movimento, então os relógios mecânicos podiam servir de modelo de
como os movimentos regulares da natureza podiam ser mecanicamente produzidos.
As máquinas em geral tinham uma determinada estrutura: os materiais e
movimentos requeridos para as fazer e fazer funcionar eram conhecidos dos seres
humanos e, em princípio, especificáveis. Ou seja, no seu todo, mas máquinas
eram apercebidas como inteligíveis. Isso implicava que nada de misterioso ou
mágico, nada de imprevisível, nada casual e caprichoso havia nessa máquina. A
metáfora da máquina podia, então, ser um veículo para “retirar a magia” da
nossa compreensão da natureza ou, como o sociólogo Max Weber disse no início do
século XX, “para o desencantamento do mundo”.
Boyle escreveu sobre a variação cultural de como se
encaravam as máquinas. Relatou um episódio, possivelmente apócrifo, de os
jesuítas “terem dito que presentearam o rei da China com o primeiro relógio,
que o tomou como uma criação viva”.
Para filósofos como Boyle ou Descartes, a visão mecânica da natureza contrastava explicitamente com o antropomorfismo e animismo de muita da filosofia natural tradicional. Para a filosofia mecânica, era preciso fazer algo radicalmente diferente do que atribuir propósito, intenção, consciência a entidades naturais.
Parte de Resenha Crítica a The Scientific Revolution, Steven Shapin, no âmbito do Mestrado em História e Filosofia das Ciências (FCUL)
À complexidade do funcionamento de um relógio esqueceram de realçar seu Tic-Tac em nossa existência:- Creio que o tic-tac de um relógio pode ser associado à ideia de>- pingos de tempo, em demanda da Eternidade...
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