terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Coisas do Ephemera: cancan, canard, galga... e o homem das botas de cortiça que ia atravessar o Tejo

Do Núcleo do Tempo do Arquivo Ephemera. No Almanaque de Lembranças para 1879. Artigo sobre o cancan, Onde se fala dos dois sentidos da palavra - dança e boato. Seria diferente do francês canard, estaria próximo da portuguesa "galga". Significado perdido há muito.

Quanto ao cancan dança, terá aparecido em Paris, pelos anos 1840, Deriva da quadrilha e, ao princípio, era praticado tanto por homens como por mulheres. Associa-se imediatamente a instituições como sejam o Moulin Rouge; à música Infernal Galop, da ópera Orfeu nos Infernos, de Offenbach; a cartazes e pinturas de Toulouse-Lautrec.

A nota refere ainda ainda o episódio de "um homem que deveria atravessar o Tejo em pé, com umas botas de cortiça".

Referência indirecta ao Milagre Eucarístico de Santarém, à sua relíquia, à vinda desta para Lisboa, aquando das Invasões Francesas. E à sua devolução.

Escreve Almeida Garrett em Viagens na Minha Terra:

[...] A história do Santo milagre de Santarém muitas vezes tem andado ligada com a história do reino; e já neste século, no tempo da guerra da independência, veio prender com um dos fatos mais importantes, e também com a mais curiosa e cômica aventura de que em Lisboa há memória.

Aludo nada menos que ao homem das botas. E perdoem-me as senhoras beatas a irreverência aparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as coisas sérias e santas. Mas o fato é que a história do Santo milagre está ligada com a célebre historia do homem das botas.

Saiba pois o leitor contemporâneo, e saiba a posteridade, para cuja instrução principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o grande paládio escalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e aí se conservou alguns anos até muito depois da completa retirada dos franceses.

Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse — ou profanasse — que era o mais provável — a santa relíquia, começou a reclamá-la o senado e o povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade de lha restituir o senado e povo ulissiponense. Era uma questão de entre Alba e Roma, que dava sério cuidado aos refletidos. Numas da regência do Rossio.

Em poucas perplexidades tão graves se viu aquele pobre governo que tantas teve, e de quase todas se saiu tão mal.

Não assim desta que a evitou com o mais inesperado e admirável estratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun­el-Raschid, ou de qualquer outro príncipe de bom humor, desses poucos felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir. Pois, senhores, apertada se via a regência destes reinos com a restituição do Santo milagre que era de justiça fazer-se a Santarém, mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alboroto no povo.

Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gosto; e bom gosto teve também o governo em o aceitar e aproveitar. Para o dia em que o Santo milagre devia sair de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande solenidade e pompa eclesiástica, — fez-se anunciar por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas de cortiça nas quais se teria direito e enxuto navegando a pé sem mais embarcação, vela nem remo.

A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi engolida. No dia aprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios, outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos passaram o melhor do dia à espera do homem das botas.

No entanto, muito sorrateiramente embarcava o Santo milagre no seu barco de água arriba, navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de Santarém.

Ninguém o viu sair, nem soube novas dele em Lisboa senão quando constou da sua chegada a Santarém, e das grandes festas que lhe fizeram aqueles saudosos e devotos povos ribatejanos.

Os Aarouns-el-Raschids do Rossio riram de socapa: e nunca tão inocentemente riu governo algum de ter enganado o povo.

Nós celebramos a história como ela merecia, e fomos jantar à Alcáçova, para irmos de tarde ver a Ribeira e procurar os vestígios do seu incuto Alfageme.


Em baixo, página da revista Brasil-Portugal, de 1 de Setembro de 1912, onde se refere a história do Homem das Botas mas se acrescenta que, em 1811, circulou profusamente por Lisboa um panfleto anunciando a futura proeza de "um oficial do exército britânico" - atravessar o Tejo com umas botas de sua invenção. Terá sido aqui que as autoridades encontraram inspiração para o "can can" montado anos depois, desviando as atenções do povo de Lisboa e permitindo a devolução sem incidentes da relíquia a Santarém. 

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