segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

meditações - o tempo vil, que tudo troca, e muda

A uma mulher que sendo velha se enfeitava

Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.

Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.

Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
Deixa estes vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota
Máscara me pareces de chacota,
E se sem 6ntas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.

Como pretendes pois com mil enganos
Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda fruta perde o brio?
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada.

Se feitura de Deus Eva não fora,
Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.

Parece que teus olhos por consciência
A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram
Não acerto com o beco, onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.

Se a meus olhos despida te ofereces,
Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.

Como ainda queres em desatinos
Dar a meninos mama:
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)
Que te alugou sem dúvida o diabo,
Invejando teu corpo, cara, e dedos
Para fazer a Santo Antão os medos.

Deixa, senhora, deixa o vão cuidado,
A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me dá Memento homo.

D. Tomás de Noronha, in Fénix Renascida

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