A noite está verdadeiramente próxima e ele não consegue imaginar, não quer
acreditar que se morre sozinho. Aterroriza-o pensar que não poderá levar a camisola tecida pela mãe. Será que as calças que lhe deram haveriam ainda de se ajustar ao seu
corpo? A camisola de gola-alta e o seu gorro de lã para que frios nortenhos o
preparam? Que noite habitarão os seus botões de punho e a écharpe branca? E o
corta-papéis, as canetas e o tinteiro, a caixa de agrafos, o agrafador, os óculos de sol e
a régua de madeira do seu avô, António José Simões Raposo, a sua caneca de café, o
pote de loiça onde colocava lápis e canetas, os papéis – recibos, facturas, cartas e
notas deixadas ao azar – porque é que não se desfazem todos no crepúsculo do seu último relógio? Que horas serão então? Que horas são agora dentro do corpo
silenciado na cama amorfa de hospital, quarto 8. Há dias em que as fulgurações do
real não atingem o limiar da consciência. Por fim, o silêncio. Sem palavras, sem
gestos, sem pessoas. O corpo apenas, sem tempo para nada, ninguém, nunca.
Clara Ferreira Alves in Expresso, in “A Pluma Caprichosa”: “O Poeta em aberto”, sobre a morte de Al Berto
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