terça-feira, 26 de maio de 2020

Meditações - Onde gastei, eu, hoje, o meu tempo?

“Onde gastei, eu, hoje, o meu tempo?”

Em plena crise pandémica, o meu relógio parou… o de pulso, o que anda sempre comigo para todo o lado. Parou às 7 horas e 10 minutos. Se da manhã ou da tarde, não sei (é um relógio analógico)… Mas ambos os horários são igualmente sugestivos, pois reenviam-me para a minha existência pré-COVID-19, para um tempo em que 7:10 era (mais coisa, menos coisa) a hora de acordar, com a ajuda do despertador, e em que 19:10 era (mais coisa, menos coisa) a hora de chegada do comboio, de regresso a casa, ao final de um dia de trabalho. Marcadores dos meus ritmos diários, há anos, muitos, apenas dispensados em fins-de-semana e em férias, tempos menos espartilhados por horários rígidos.

Quando o relógio parou fiquei apreensiva: “Logo agora, que está tudo fechado! Onde vou eu desencantar uma pilha?” É preciso dizer que gosto de usar relógio (é uma segunda pele, tal como os óculos) e sempre resisti a substituí-lo pelo versátil telemóvel, que entre tantas coisas que nos permite fazer, ver as horas é apenas uma delas. Não é, contudo, a mesma coisa, não está sempre à mão, ao subtil e natural(izado) rodar do pulso, e é tão dispersivo que não me transmite a segurança de que sou dona do meu tempo (cada qual com a sua mania…).

Mas os dias foram passando e a (ir)realidade da crise pandémica, e do que ela nos exige individual e coletivamente, materializou-se num confinamento em família, a 4, em que tardam a chegar novas rotinas e em que se esboroam fronteiras (tão arduamente conquistadas na longa história das relações laborais) entre tempos de trabalho e de descanso, diluindo os 7 dias da semana e a sucessão das semanas. Mas também em que se esboroam as fronteiras dos espaços e dos seus objetos, adquirindo novas funções que se somam às ou que expulsam mesmo as anteriores. “Que dia é hoje?” Pergunta que, cá por casa, fazemos amiúde, em voz alta ou em voz baixa. Será, porventura, uma marca distintiva das experiências de confinamento prolongado, este tempo que teima em escapar-nos? Imagino que sim…

Não por acaso, multiplicam-se por estes dias, na comunicação social, conselhos e sugestões sobre o modo como devemos organizar o nosso tempo e sobre as atividades que não devemos descurar nas 24 horas do dia: “quando estiverem a trabalhar, façam curtas pausas de meia em meia hora”; “façam, todos juntos, um bolo de chocolate” (ou, inversamente, “procurem fazer uma alimentação mais saudável”); “organizem, finalmente, as fotografias das férias”; “vejam os clássicos do cinema”; “deem um pequeno passeio matinal”; “dediquem uma parte do dia para brincarem com os vossos filhos”; “reservem tempo para a prática de exercício físico”; “aprendam aquela língua estrangeira que sempre quiseram”…

Mais coisa, menos coisa, palavras bem-intencionadas, estas dos coaches do tempo, mas também culpabilizantes, pois colocam-nos perante a nossa dificuldade em agarrar esta fera indomável, este tempo que não se deixa domesticar. Quem é que ainda não se perguntou, ao final do dia: “Onde gastei, eu, hoje, o meu tempo?” Eu já me perguntei várias vezes, tantas que não têm conta. Procurar transformar, afincada e voluntariosamente, este tempo de confinamento forçado em tempo regrado e de oportunidade, afigura-se uma missão tão hercúlea quanto inglória para muitas pessoas, perdoem-me os coaches do tempo…

Recentemente, a Susana Atalaia e eu publicámos um artigo sobre os padrões de divisão sexual do trabalho na Europa entre os casais em idade ativa e a viverem com filhos menores. Tendo por base resultados do ISSP 2012 ‘Família e Papéis de Género em Mudança IV’ (1) analisámos as horas semanais que mulheres e homens de 18 países da UE28 despendem, em média, em três frentes: atividade profissional, tarefas domésticas e cuidados a crianças e a outros familiares doentes ou dependentes. Com efeito, a produção e a reprodução da vida familiar estão grandemente ancoradas no trabalho desempenhado nestas três frentes, com a particularidade de a primeira ter retorno económico (trabalho pago) e as demais não (trabalho não pago).

Tratando-se de indicadores clássicos e aparentemente objetivos do volume de trabalho semanal de mulheres e homens em cada uma dessas vertentes, à partida acumuláveis tendo em conta que aparentemente não se intersetam (2), foi com alguma surpresa que verificámos não ser possível calcular indicadores mais sintéticos (ex. volume de trabalho não pago, volume global de trabalho pago e não pago), sob pena de a semana ter um número absurdo de horas a mais. Ingenuidade nossa? Por certo! Só aparentemente estas esferas da vida não se intersetam e não se confundem, tornando-se difícil separar o trigo do joio… Afinal, quem nunca experienciou estar em modo multitarefa? Estaremos a mentir se dissermos que estamos 100% alocados a cada uma delas? E quem nunca se sentiu “a mil por hora”?

Mais recentemente ainda, no início deste ano, já a COVID-19 habitava outras paragens do globo, a Magda Nico, a Cláudia Casimiro e eu, enquanto coordenadoras da Secção Temática Famílias e Curso de Vida da Associação Portuguesa de Sociologia, organizámos o Seminário «Os Tempos da Família: Estrutura, Uso e Desigualdades».

Falou-se profusamente de tempos e temporalidades da vida familiar: de tempos divididos, assimétricos e (es)partilhados; de tempos apressados do dia-a-dia e de tempos lentos de cuidar; de motivações, sentidos e retornos atribuídos a tempos quotidianos e a tempos excecionais; de estruturas económicas ocultas nos tempos das famílias…

Longe, nós, de imaginarmos o quão os nossos objetos de investigação seriam rápida, vasta e contundentemente submersos pela “onda que se abate[u] sobre nós”. Onde está, neste momento, o interessantíssimo objeto de investigação que a Maria Johanna Schouten e a Soledad Las Heras nos trouxeram, sobre a centralidade do carro na vida das famílias com crianças, na sua mobilidade diária entre casa, escola e trabalho? Quanto tempo ficará submerso nestas águas? Não sabemos, pois não podemos prever a temporalidade da “onda” nem os efeitos que a sua passagem deixará na vida das famílias.

Umas das oradoras do Seminário foi a socióloga madrilena María Ángeles Durán. É certo que o seu livro O Valor do Tempo há muito me acompanhava nas minhas reflexões sociológicas sobre a vida familiar, os papéis de género e a conciliação família-trabalho, mas nestes tempos de confinamento familiar senti urgência em voltar a ele. “Quantas horas te faltam ao dia?”, é o sugestivo subtítulo do livro.

Não é segredo que na sociedade portuguesa (como em muitas outras, aliás) faltam, estruturalmente, horas aos dias de homens, mulheres e crianças. Faltam as não produtivas (e, portanto, pouco valorizadas) horas de ócio, de descanso, ou mesmo de sono, tão grande é a centralidade do trabalho (aqui em sentido lato, incluindo o não remunerado e o escolar) na organização da vida pessoal e da existência coletiva (3). E também não é segredo que para outros, em regra mais velhos, economicamente “inativos” e sem laços familiares e sociais fortes, o tempo sobeja, o dia tem horas a mais, que custam a passar… É que o tempo, embora se traduza em unidades de medida socialmente convencionadas (as horas, os dias, as semanas…), é também, ou sobretudo, uma experiência eminentemente subjetiva. E em tempos de pandemia e confinamento, o tempo mede-se e experimenta-se de outra maneira.

“Quantas horas te faltam ao dia?”, perguntava, então, de forma provocadora, a autora no subtítulo do seu livro. Ao meu dia, faltam muitas! Nunca me faltaram tantas como agora, neste tempo e espaço individual e familiar híper-fragmentado, que nos coloca perante o desafio, sem precedentes, da hipertrofia da conciliação família/teletrabalho/telescola. Rodeada de relógios domésticos (todos digitais), nenhum me devolve o sentimento de que sou dona do meu tempo. No entanto, novos marcadores do tempo, deste tempo excecional que hoje vivemos, entraram cá em casa para nos resgatar da dimensão doméstica e nos transportar para a dimensão coletiva desta experiência à escala global.

Duas vezes por dia, todos os dias desde que foi decretado o estado de emergência, entra-nos pelas janelas o toque para reunir… à janela! É o encontro de vizinhos (que nunca o tinham sido), muitos, cada vez mais à medida que os dias passam. É um encontro que nos afasta dos nossos afazeres individuais, onde estamos embrenhados, ou nos surpreende à hora da refeição, ficando a comida a arrefecer nos pratos. É um encontro que nos retira do espaço confinado da casa. Assim será em muitas casas. Mas noutras, também muitas pelo que nos é dado a observar da nossa janela, é o encontro aguardado com expetativa e, talvez, impaciência. São os primeiros a comparecer, estas mulheres e estes homens sós. Novos, alguns. Velhos, muitos. Um marcador particularmente estruturante dos seus dias cheios de horas a mais? Creio que sim.

O que ficará destes tempos de confinamento no tempo pós-COVID-19? Não sabemos, mas cá estaremos para observar, investigar, refletir e dar a conhecer.

PS: Quero deixar aqui alguns agradecimentos. A tod@s @s colegas que me antecederam neste LIFE GOES ON, por me terem ajudado a sacudir a minha letargia. À Ana Nunes de Almeida, em especial, pela “Onda”. À Susana Atalaia, por me ter desafiado a partilhar a experiência dos ‘Vizinhos à Janela’.

Notas:

(1) Sobre os Inquéritos do ISSP, tópicos e rondas clique aqui.

(2) As perguntas do inquérito para reportar as horas semanais de trabalho em cada esfera eram as seguintes: How many hours, on average, do you usually work for pay in a normal week, including overtime?; On average, how many hours a week do you spend looking after family members (e.g. children, elderly, ill or disabled family members)?; On average, how many hours a week do you personally spend on household work, not including child care and leisure time activities?”

(3) Sobre o impacto da crise pandémica e do confinamento no agravamento das desigualdades de género e demais desigualdades sociais sistémicas, recomendo vivamente que oiçam a entrevista da Sofia Aboim, no âmbito da iniciativa do Observatório das Desigualdades “Um olhar sociológico sobre a crise covid-19″, e a intervenção da Ana Nunes de Almeida, no âmbito da Conferência Digital, organizada pela CITE, “Conciliar Trabalho, Família e Vida Pessoal em tempos de Covid-19”, disponíveis aqui.

29 de abril 2020

Vanessa Cunha é socióloga e investigadora auxiliar no ICS-ULisboa. No seu percurso de investigação destacam-se duas linhas de pesquisa: uma sobre baixa fecundidade, adiamento dos nascimentos, decisões reprodutivas e parentalidade; outra sobre conciliação família-trabalho, políticas públicas, igualdade de género e masculinidades. Atualmente coordena o projeto “PARENT – Procriação e Parentalidade em contexto de baixa fecundidade, mudança familiar e crise económica” (2018-2021), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/SOC-SOC/29367/2017).

Cunha, Vanessa (2020). “Onde gastei, eu, hoje, o meu tempo?” Life Research Group Blog, ICS-Lisboa, https://liferesearchgroup.wordpress.com/2020/04/29 29 de abril (Acedido a 29/04/20)

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