Diários da Quarentena: A saudade dentro do relógio
Vinha no antigo livro da terceira classe, aquele que tinha na capa um lusito fardado de Mocidade Portuguesa com a bandeira das quinas desfraldada. Lá por dentro, onde nem tudo era mau, aparecia um conto sobre a emigração, naquele tempo quase sempre para as Américas, do Sul e do Norte, obviamente saudosista, a recordar aos que tinham ficado a sorte que os tinha abraçado.
O nosso emigrante, creio que na Venezuela, tinha convertido todo o seu pecúlio num imponente relógio que dava as badaladas tal como o sino da sua aldeia. Lá mais para a frente ficávamos a saber isso e também que ele estava agonizante. Ao bater das 12 badaladas do sino daquele dia, sabe-se lá qual, o digno ancião faleceu com um sorriso nos lábios.
O conto estava bem escrito e a miudagem, e não só, comovia-se vertendo uma lágrima e assoando o nariz. Num dos contos do suplemento do Natal do JF deste ano, um deles tratava da importância que o tocar dos sinos deixa em nós. É consolador num tempo de regresso escutar o badalim badalão da infância. É claro, como sublinhava a contista, que raros são os que ainda hoje soam martelando o bronze. Na maioria são instalações sonoras que reproduzem o mesmo som, nuns casos com o hino de Fátima, nos outros como se fosse o sinal horário.
O edifício dos Paços do Concelho tinha um relógio Cousinha, de que só alguns entendiam a importância, pois o Sr. Cousinha foi um fabricante de relógios de pesos, com oficina em Almada. As dezenas de relógios de torre que fabricou são hoje procurados pelos colecionadores e há muito que me pergunto se o verdadeiro Cousinha dos anos 1950 está de facto armazenado nas oficinas camarárias. Se assim for talvez um dia ele possa ser reerguido num local mais abrigado e recomece a dar as horas que ouvíamos em criança. Há ainda montadores e reparadores de relógios de pesos.
O que convém evitar é que pelo Fundão passe um bem-falante que decida oferecer dois patacos pelo “ferro-velho” que ocupa os armazéns. Em tempos não distantes foi assim que muitas igrejas e capelas do concelho se despiram dos seus silhares de azulejo, alguns polícromos, do século XVIII, para se revestirem de porcelana de cozinha de 1980.
Enfim, acontece e ninguém leva a mal; quem é que é capaz de viver sempre na mesma sala, no mesmo quarto, na mesma cozinha? Sobretudo em quarentena.
Mas isso são outros contos. Até à próxima.
António Melo, jornalista, in Jornal do Fundão de 24/03/2020
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