sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
José Carlos Saldanha - O "Senhor Omega"
José Carlos Saldanha na apresentação de um dos Anuários dos Relógios & Canetas, que lhe fez uma Grande Entrevista, em 2012
A entrevista
Quando e porquê começou a colecionar relógios?
Estou convencido de que comigo se tratou de uma herança de princípios e valores que me foram transmitidos por parte do meu avô Tomaz com quem passei os momentos de fantasia mais marcantes da minha infância.
Era um homem que gostava de ter objetos de uso pessoal com qualidade e à parte disso tinha uma sensibilidade muito especial. Desde boas canetas, bons relógios, carros, etc., cultivava igualmente este espírito do Colecionismo.
Para além das moedas e notas, passando pelos selos, tinha como não podia deixar de ser aquilo que desde cedo me despertou mais a atenção, a coleção de relógios que na sua maioria era de bolso e que guardava num cofre de madeira que existia lá por casa. Foi aqui que tudo começou, sempre que ele ia ver os seus relógios eu acompanhava-o e lá vinha aquele ritual: o dar corda, o auscultar ao ouvido aquele tic-tac, a batida ritmada das repetições, tudo isto fazia-me parar no tempo como se de magia se tratasse.
Não tenho dúvidas de que a “ferra” de um verdadeiro colecionador faz parte da sua própria personalidade e que já nasça com ele, mas comigo tudo isto teve o seu peso e foi determinante.
Em 1974 com o desaparecimento do meu avô, ficaram três coleções – selos, moedas e relógios. Como somos três irmãos, a minha mãe resolveu falar com eles e, por exclusão de partes, decidiu-se que eu deveria ficar com os relógios. Desta forma eu acabei por ficar com uma coleção de relógios numa idade em que não tinha nem maturidade, nem condição financeira para lhe dar continuidade. Anos mais tarde, nos inícios dos anos 80, comecei a ganhar os primeiros tostões, foi então aí que surgiram os meus primeiros relógios de pulso.
Nessa época podiam-se adquirir relógios muito baratos e foi aí que eu comecei a aumentar a coleção. Em Portugal não existia muita gente a comprar relógios e a oferta era muito maior que a procura. Havia colecionadores de relógio, mas a maioria dedicava-se aos de bolso e eu tive o privilégio de ser um dos pioneiros nos relógios de pulso. Isso facilitou-me imenso, e pude aumentar a minha coleção consideravelmente sem grande esforço financeiro.
Muitos relógios, alguns dos quais ainda guardo, foram-me oferecidos, e chegava-se a comprar quase ao peso, era inacreditável. Hoje não poderia de maneira nenhuma ter chegado onde cheguei, pois o mercado dos nossos dias está bem diferente.
Quando e porquê começou a especializar-se em Omega?
Quanto à decisão de colecionar Omegas, devido à minha paixão pelos relógios na sua generalidade, apenas veio a acontecer há 15 anos atrás.
Isto de colecionar uma marca, para quem gosta de relógios como eu, não foi mesmo nada fácil. Tratou-se de uma questão de maturidade e muita disciplina, mas isso só pôde acontecer com o tempo, e comigo levou mais de uma década para que acontecesse. De princípio, comprava os relógios indiscriminadamente, e o facto determinante era a sua beleza exterior ou se quisermos o Design.
Comprava de tudo um pouco, Longines, Internacionais (IWC), Omegas, Universal, Tissot, Breitling e até Caunys. Enfim, comprava aquilo que me aparecesse e gostasse. Só alguns anos mais tarde resolvi definir um determinado segmento para a minha coleção e optei então pela Omega.
Como sabemos, foi e ainda é uma marca muito popular entre nós portugueses, e daí não ser difícil encontrá-los no nosso mercado. Isto, devemos, e convém realçar, à forma como a marca foi trabalhada pelos agentes em Portugal. Primeiro pelo A. Garcia e, depois, durante largos anos, pelos Srs. António Moura e Olindo Moura, que a tornaram definitivamente famosa entre nós.
Quem queria ter um bom relógio comprava um Omega, de forma que encontrava-os com relativa facilidade. Na verdade, aliado à sua qualidade técnica, sempre tiveram uma característica que os destacavam dos outros, eram muito bonitos.
A Omega sempre se preocupou muito com o aspeto visual e artístico dos seus mostradores. Os materiais que usava eram de altíssima qualidade e a sua decoração era de um gosto inigualável. Foi aliás por aí que me deixei render ao seu encanto.
Mas, obviamente que a par desta característica, surgem outras qualidades sem a qual ela não se teria tornado numa das líderes no mercado da indústria relojoeira, aliás a 2ª marca que mais vende no Mundo.
Por traz de tudo isto existe uma história e um palmarés infindável de triunfos que a marca conquistou desde o seu início. Na história dos concursos de precisão alcançou diversos recordes, tanto no observatório de Kew Teddington como em Genebra e Neuchâtel, levando de vencida Patek, Vacheron e muitas outras, colocando os seus cronómetros, quer de bolso como de pulso, 93 vezes no primeiro lugar, sendo que por 72 vezes bateram recordes absolutos.
Esteve também sempre ligada ao desporto e é, ainda hoje, a marca que mais vezes se fez representar como cronometrista oficial nos Jogos Olímpicos. Foi também uma das marcas que ao longo da história forneceu inúmeras forças militares de elite, desde a I à II Guerras Mundiais. Foi eleita como a marca oficial, equipando o exército, a aviação e a marinha britânicos, a aviação canadiana, os exércitos norte- americano, sueco, e até do outro lado da linha os alemães da Luftwaffe, e o exército alemão (DE) Dienstuhr Heer se equiparam de Omega.
Como foi adquirindo / vendendo / trocando as suas peças? Tem contactos com colecionadores nacionais, estrangeiros? Costuma ir a feiras de antiguidades / relógios no estrangeiro?
De início comprava os meus relógios apenas em Portugal; visitava as exposições de antiguidades, ia a feiras de rua, percorria o país de norte a sul passando pelas relojoarias mais antigas, relojoeiros e até particulares. Podia-se comprar relógios em 2ª mão muito baratos e foi assim que comecei a fazer a minha coleção. Nessa altura havia pouca gente a interessar-se por este tipo de negócio, e ao longo de muitos anos foi sendo assim. As pessoas foram-me conhecendo e, por fim, já eram elas que me contactavam a propor negócios. Com o decorrer do tempo comecei a arriscar o mercado exterior onde o tema estava muito mais dinamizado. Comecei por Espanha, depois França, Itália, Suíça, Alemanha, Áustria e conheci muita gente que tal como eu gostava de relógios e outros que faziam disto o seu modo de vida. Desenvolvi grandes amizades a esse nível e assim fui crescendo neste Mundo dos Relógios até que, por fim, quando me apercebi estava envolvido no negócio.
Hoje, para além de me ter tornado num dos maiores colecionadores da Omega a nível mundial, faço disto o meu modo de vida. Tornei-me num perito em relógios de coleção e, permitam-me que vos diga, Portugal tem um grande potencial neste negócio. De repente, fui-me apercebendo que não estava só. Na verdade o Homem Português sempre gostou muito de relógios e a história confirma-nos isso. Senão vejamos o ícone em que se tornou a IWC, a Portuguesa da IWC, que ainda hoje se fabrica e não é mais do que o embaixador da marca pelo mundo fora. Este foi um modelo que nos anos 40 foi encomendado à marca por dois industriais portugueses do sector, a fim de satisfazer um pedido do mercado. Hoje é o êxito que todos sabemos. Mas existem muitos mais exemplos, e até nos nossos dias podemos constatar isso com inúmeras marcas de referência – estou-me a recordar da Vacheron Constantin, com o modelo exclusivo para o nosso mercado, “O Mercator Portugal”, a Longines com os modelos Vasco da Gama, Lusíadas, Infante D. Henrique, Macau e, há bem pouco tempo, o Longines Comemorativo da República.
Também a Zenith fabricou relógios para nós, como a edição dos 500 anos da descoberta do caminho marítimo para a India. A Tissot, com o modelo “Escudo”, depois os modelos que homenagearam diversas cidades como Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, ou o Tissot evocativo dos 500 anos da descoberta do Brasil.
A Omega, homenageou personalidades como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Eça de Queiroz, Amadeu Souza Cardoso e José Malhoa. A Jaeger Le-Coultre, que também tem vindo a homenagear os nossos artistas plásticos contemporâneos com um dos seus modelos mais conhecidos o “Reverso”, primeiro Júlio Pomar, seguido de José Cargaleiro, Paula Rêgo, José de Guimarães e, por fim, o modelo Reverso Squadra, alusivo ao Arco da Rua Augusta.
Existe uma ligação infindável, que funde a nossa história e cultura com a indústria relojoeira, no passado e no presente, como podemos ver.
Isto apenas prova que nós, homens portugueses gostamos muito de relógios.
A Internet mudou a maneira como se informa / compra / vende?
Sem sobra de dúvida, a Internet veio abrir um novo capítulo na História da Humanidade e, consequentemente, introduzir novos conceitos e regras de negócio neste domínio dos relógios, mas essencialmente o benefício maior que lhe posso atribuir é o da Informação.
Quando comecei, não existia nada disto. Hoje, para se saber a cotação de um relógio basta clicar o rato e salta de lá toda a informação de que precisamos. No início, tinha que me deslocar a outros mercados, e isso implicava riscos, custos e dias de trabalho. Hoje, se quisermos saber o valor de um relógio, basta consultar a lista de resultados dos leilões que as casas da especialidade nos fornecem nos seus sites.
Por outro lado, perdeu-se um pouco da magia, aquele sabor que outrora pude experimentar, a aventura de partir para o desconhecido em busca da “Joia Perdida”, as montanhas cobertas de neve, feiras internacionais, pessoas, costumes, países, amizades, enfim um infindável mundo de coisas e situações que tive o privilégio de disfrutar e que fizeram de mim a pessoa que sou hoje esvaíram-se. Não quero com isso que me considerem ou me conotem como sendo um bota-de-elástico ou até mesmo um conservador fundamentalista, nada disso. É como tudo, tem o seu lado positivo, mas também tem o negativo.
Vou seguramente enquadrar-me nesta nova realidade e a médio prazo tenciono ter um site onde possa de forma segura e mais abrangente partilhar com o mundo esta minha colecção.
Como um velho amigo dizia, mais será revelado!...
Qual a peça mais valiosa da sua coleção? A esta questão não vos consigo responder com objetividade pois eu entendo que a minha coleção vale como um todo. É efetivamente a diversidade de modelos e o seu estado de conservação que a tornam interessante.
É certo que existem algumas peças que se destacam; umas porque a sua produção foi muito reduzida e poucas sobreviveram até aos nossos dias, outras porque foram usadas por personagens que fizeram história, e ainda outras que, à parte de tudo isto, assumem uma elevada importância para mim porque fazem-me recordar momentos únicos nesta minha viagem em busca da “Jóia Perdida”.
Estou-me a recordar dos meus “Italo-Balbo”, dois relógios que possuo e um terceiro que cedi ao Museu da Omega com quem mantenho uma relação de amizade faz anos.
Estes relógios fizeram parte de uma encomenda específica por parte de um general famoso na II Guerra Mundial, o general “Italo-Balbo” então ministro das forças aéreas italianas. Aquando do célebre raide transatlântico Roma-Chicago, Chicago-Roma e 1933, J. Balbo encomendou para cada comandante e correspondente piloto dos 24 hidroaviões intervenientes um destes cronógrafos. Na totalidade, entre ouro e aço, foram produzidos 48 relógios.
Não posso deixar de falar do meu Omega “Lawrence da Arábia”, um dos primeiros cronógrafos de pulso que a marca produziu. Trata-se de um dos 3 que estão identificados em todo o mundo. É uma peça fantástica e foi com ele que ganhei há bem pouco tempo o concurso de cronógrafos que o Museu do Relógio em Serpa promoveu.
Já agora, refira-se que quem tiver oportunidade e quiser, pode mesmo ver no Museu da Omega, em Bienne, o relógio que foi usado por Thomas Edward Lawrence ou “Lawrence da Arábia”, como ficou mais conhecido.
Por falar em cronógrafos, dois dos meus preferidos e igualmente ligados à aviação, um de 1934 e outro de 1939 são os cronógrafos calibre 28.9 chro, iguais aos que Amélia Earhart usou aquando da malograda tentativa da volta ao globo seguindo uma rota equatorial em 1937, no seu bimotor de 500 cavalos, e que foi dado como desaparecido a 2 de Julho de 1937. Ela estava igualmente equipado com um Omega cronógrafo de bordo, com o calibre 39 chro, à semelhança dos hidroaviões da esquadra de Italo Balbo.
Um outro Omega que fez parte deste cenário foi o Marine, o primeiro relógio estanque que a Omega produziu, e que eu também tenho. Também tenho exemplares de quase toda a família Speedmaster, que todos conhecem bem e que ficou famoso por ter sido o relógio que foi à Lua.
A família Seamaster, como o 300 do James Bond, o 600 que Cousteau usou nas suas tão conhecidas expedições, o Railmaster e muitos outros também estão representados.
Qual a peça que gostaria mais de ter?
Existe uma, pois assim concluiria a coleção dos Omega Speedmaster. Não é fácil e até a Omega apenas conseguiu um exemplar, trata-se do primeiro Speedmaster de 1957, o CK2915. Um dia ele vai-se cruzar comigo eu bem sei, mas… saber esperar não é uma das minhas melhores virtudes ou não fora colecionador. Depois, os meus amigos sabem que os meus modelos preferidos são os cronógrafos em aço, e entre eles os calibres 28.9 chro e o 33.3 chro. Embora já tenha alguns bastante raros, continuo sempre na expectativa de encontrar mais um. Sei que, algures por aí, estão ainda uns tantos, esquecidos no fundo de uma gaveta, ansiando por um novo dono, quiçá, eu…
Reparo que tem, além de relógios, outro tipo de material relacionado com o mundo da relojoaria - anúncios, caixas, etc. Como foi conseguindo isso?
À semelhança da minha coleção de relógios, os documentos, publicidades, livros técnicos e até estojos, têm vindo a aparecer ao longo dos anos, mas a um ritmo muito mais cadenciado.
Na verdade, torna-se mais fácil encontrar um relógio do que o seu estojo, até porque os estojos antigos eram de cartão e para além das pessoas não lhes atribuírem grande importância, estes estavam sujeitos a um processo de degradação mais rápido pela sua composição. Ora assim sendo, encontrar um estojo de 1910 ou mesmo 1940 em bom estado não fica muito fácil, daí eles serem muito raros e consequentemente muito procurados pelos verdadeiros colecionadores.
O mesmo acontece com as publicidades e livros da época pelas mesmas razões. Ainda mais difícil é encontrar um relógio dessa época com a sua garantia original. Felizmente tenho alguns exemplares na minha coleção, e isso acresce-lhes um valor significativo. Grande parte dos estojos e publicidades adquiri em Portugal e em Espanha mas muitos outros vieram de Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Perú, Estados Unidos enfim um pouco de todo o mundo.
Que conselhosdaria a um amante de relojoaria que queira iniciar uma colecção?
O racional, aqui, fala muito menos do que o emocional. Um colecionador como eu, só com o tempo aprende a lidar construtivamente com este padrão de comportamento impulsivo e compulsivo que nos caracteriza. Mas, sem estas características, dificilmente se poderá avançar neste mundo que é o colecionismo.
De início, eu comprava tudo o que me aparecia, acho que isso acontece com todos aqueles que se estão a iniciar. Tudo é novidade e como é a paixão a falar, torna-se difícil contrariar esse sentimento. Neste momento existe uma coisa que eu não tive, a Internet, que é uma fonte de informação enorme e um suporte adicional que pode ajudar muito quem está a começar nestas andanças.
Para o colecionador, a par da paixão que nos move, está aquele bichinho que é o da descoberta e o fascínio da oportunidade. Estes ingredientes atiram qualquer estratégia ou teoria por terra, nada pode funcionar.
Quando olhamos para um relógio pela primeira vez, e sentimos aquele click, já se sabe que temos que o comprar. Contra isto nada há fazer… ou se é colecionador ou não se é. Se comprarmos em determinados mercados específicos, se procurarmos casas da especialidade, com tradição, se procurarmos gente que está no negócio, mas que gosta e está com dedicação e seriedade, as hipóteses de concluir um bom negócio é bem maior.
O tempo, para si, é importante?
Para mim o tempo é, a par da saúde, uma das maiores riquezas da humanidade. Desde cedo o Homem sentiu necessidade de o quantificar, e desde os astros passando pelos relógios mecânicos, quartzo, césio e maser de hidrogénio dos nossos dias, ele aprendeu a aplicá-lo no seu quotidiano, tornando-se hoje indispensável nas nossas vidas.
Embora eu tenha que me enquadrar nesta realidade, pois não vivo nem em Marte nem em Júpiter, aprendi que o meu tempo é feito de um passado que guardo na memória, de um presente que procuro viver e partilhar com os demais o melhor possível, e um futuro onde coloco os meus sonhos e que espero alcançar. Isto foi o que herdei, e espero ser isto que irei deixar aqueles que me são próximos e de quem gosto.
Este é o meu maior tesouro. Os relógios fazem, entre outras coisas, parte deste meu tesouro pois ajudam-me a vivê-lo com o sorriso que me caracteriza.
Este senhor cruzou-se na minha vida devido a uma doença que partilhámos, a Hepatite C, e devido à luta que travou contra ela e da qual saíu vencedor ofereceu-me, sem saber, Tempo de vida.
ResponderEliminarObrigado, José Carlos Saldanha, ficarás guardado para sempre na minha lembrança.
Um grande abraço para ti.
José Neto