quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Ephemera - a festa de 10 anos aos papéis


(Fotos Rui Serrano, Estação Cronográfica e Teresa Lage)

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou recentemente a Associação Cultural Ephemera, um projecto do historiador José Pacheco Pereira. Isto numa altura em que foi inaugurado no Barreiro um segundo armazém de tratamento dos materiais que vão chegando de todo o país.

Entre os Núcleos já criados, está o dedicado ao Tempo. Somos um dos voluntários a trabalhar no projecto, sendo o Curador dos Núcleos do Tempo e... da Gastronomia.

Quanto ao Tempo, reforçamos o apelo que já aqui fizemos. Não deite nada fora! Doe ao Ephemera.

Sem sermos exaustivos, e quanto ao Núcleo do Tempo, há interesse em:

Agendas
Almanaques
Calendários
Capas de livros, discos, etc (com relógios)
Catálogos e outro material das marcas relojoeiras
Fotos (com relógios)
Horários (de caminhos-de-ferro, barcos, etc., mas também de comunidades laicas ou religiosas)
Livros de gnomónica
Livros de relojoaria
Material sobre Congressos, seminários e outros eventos científicos sobre o Tempo
O Tempo na Biologia
O Tempo na Ficção (tipo A Máquina do Tempo, Volta ao Mundo em 80 Dias, Alice no País das Maravilhas, etc.)
O Tempo na Física
O Tempo na Pintura e Escultura
O Tempo na Poesia
O Tempo na Sociedade (tempos de luto, de jejum, de trabalho, de lazer, das redes sociais, sociologia do Tempo) O Tempo no Cinema
Postais (com relógios)
Publicidade (relacionada directamente com as marcas, mas a que usa também relógios, ampulhetas e outros conceitos de Tempo) Relógios mecânicos, de quartzo, de sol, clepsidras, ampulhetas
Revistas de relojoaria
Toda a documentação e memorabilia de marcas relojoeiras, ourivesarias, joalharias, relojoarias, incluindo material de montra descontinuado.


Foto de grupo, no Armazém 1, com Marcelo Rebelo de Sousa


Na rua onde se encontram os armazéns 1 e 2, no Parque Industrial Baía do Tejo. Com Maria Emília Brederode Santos, uma das doadoras do Ephemera


Depois de uma visita ao armazém 1, Marcelo Rebelo de Sousa dirigiu-se ao armazém 2, para a sua inauguração


Junto do grafitti pintado em frente do novo armazém, com George Orwell e uma citação dele: "Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado". É tudo uma questão de memória e da sua preservação





Algum do material do Núcleo do Tempo que, à medida que vai chegando ao Barreiro, é separado, catalogado, arrumado e colocado online, disponível para consulta e investigação




Marcelo Rebelo de Sousa troca impressões junto ao Núcleo do Tempo




No meio de corredores carregados de material recolhido pelo Ephemera, José Pacheco Pereira, fundador do projecto, vai explicando tudo ao Presidente da República. Em baixo, Luís Pinheiro de Almeida, especialista em música Pop, é um dos Curadores e explica a Marcelo Rebelo de Sousa, seu colega na Faculdade de Direito, a área que coordena



Poster de Eduardo Aires alusivo aos 10 anos do Ephemera e aspecto dos corredores




Durante a inauguração do armazém 2, que contou também com a presença do General Ramalho Eanes, antigo Presidente da República



A Associaçao Cultiural Ephemera foi condecorada pelo Presidente da República como Membro Honorário da Ordem de Mérito

O Manifesto do Ephemera, de José pacheco Pereira, distribuído a 22 de Fevereiro, no evento de inauguração do armazém 2:

O Arquivo-Biblioteca Ephemera há dez anos que “anda aos papéis”. Tem mais de 200.000 títulos de livros e brochuras, dezenas de milhares de periódicos, vários milhares de cartazes, posters, imagens, faixas, outdoors, panos, cartazes artesanais de manifestações e de protesto, fotografias, milhares de objectos, centenas de milhares de panfletos, folhetos, tarjetas, etc., milhares de emblemas e pins, dezenas de milhares de autocolantes, mais de 6 quilómetros lineares de estantes e armários. Compreende um conjunto de espólios, colecções e acervos único pela sua dimensão e pela importância dos seus fundos, sendo, sem dúvida, o maior arquivo privado em Portugal e um dos maiores da Europa.

É uma colecção nacional e internacional com cerca de 100 países representados, embora este número, nalguns casos, seja pouco mais do que um pin. Mas há boas colecções de Espanha, da Irlanda, do Brasil, dos PALOP, etc. e, dado que não existe paralelo em arquivos nacionais, é o único sítio onde, por exemplo, um estudioso da propaganda política pode encontrar cartazes eleitorais do Irão ou da Colômbia, de Angola ou da Noruega. Tudo isto se encontra em seis casas adaptadas e um armazém na Vila da Marmeleira, dois armazéns no Barreiro e mais depósitos nos nossos locais de recolha. Neste momento, há postos de recolha em Viana do Castelo, Porto, Lamego, Guarda, Coimbra, Figueira da Foz, Santarém, Lisboa, Barreiro, Lagoa, e nos próximos meses abrirão Viseu, Portalegre, Leiria, Braga. Há dois locais de recolha fora de Portugal, no Luxemburgo e em Luanda, em Angola.

O impacto público do Arquivo é considerável. Estão publicadas online mais de 24.000 pastas de documentação, com mais de 100.000 imagens e textos, quer no blogue e no site Ephemera, quer na página do Facebook que divulga as publicações e as actividades do arquivo, quer no canal do YouTube (311 vídeos). Nas redes sociais há quase 15.000 seguidores (cerca de 10.023 no facebook + 4.941 no twitter), e mais de 4.000.000 visitas ao blogue. Os filmes produzidos em colaboração com a TVI24, de que já foram exibidos 45 episódios, têm boas audiências. Exposições organizadas pelo Arquivo tiveram milhares de visitantes, em Viana do Castelo, Porto, Óbidos, Coimbra, Lamego, Ponte de Sor, Torres Vedras, Barreiro, Lagoa, Condeixa, Lisboa, Barreiro, etc. Vários livros, artigos e trabalhos académicos usaram materiais do Arquivo, no qual estão a decorrer actualmente várias investigações. Artigos e reportagens na imprensa portuguesa e espanhola foram feitos sobre o Arquivo e os seus fundos. Em colaboração com a editora Tinta da China existe uma colecção gerida pelo Arquivo com sete livros publicados, e estão editados três Cadernos do Ephemera, com edição da Associação Cultural Ephemera.

O arquivo é gerido pela Associação Cultural Ephemera, uma associação cultural sem fins lucrativos fundada em 2017, à qual foi reconhecida a utilidade pública em 2019. A Associação tem hoje cerca de 300 associados. Foram assinados protocolos de colaboração com o Museu de Lamego, a Câmara Municipal do Barreiro, a Baía do Tejo, a Direção-Geral do Património Cultural (relativamente ao Museu Nacional Resistência e Liberdade), e outros estão em fase de assinatura.

O Arquivo tem uma prioridade: salvar, salvar, salvar tudo o que faz parte da nossa memória colectiva. Depois de salvar há que conservar, organizar, inventariar, disponibilizar, investigar, publicar. Toda esta sequência é importante, mas primeiro há que salvar e, embora não pareça, nem sempre esta é a prioridade noutros arquivos. Acreditamos que, aconteça o que acontecer, salvo a peste, a fome e a guerra, o que cá entra está mais seguro do que o que fica em casa, que o interesse ou a falta dele, os recursos ou a falta deles, a morte, os divórcios, as mudanças de casa, ou os dias de destruição colectiva como as segundas-feiras depois das eleições, ajudam a eliminar. E todos os dias milhares de fragmentos da nossa memória colectiva desparecem, cartas, fotos, papéis, manuscritos, objectos, cartazes. Daí uma política activa de recolhas, assente numa pedagogia da memória (que compreende os programas de televisão, artigos, palestras, exposições, etc.), numa rede fina de recolhas por todo o país e fora dele, e na acção dos voluntários assente no lema “não deite nada fora”. Não se preocupem, nós, se for caso disso, deitamos.

O Arquivo é omnívoro, come de tudo. Compreendemos que tal não possa ser feito pelos grandes arquivos, que têm que ser selectivos, mas a nossa experiência diz-nos que surge sempre alguma coisa de único no que recebemos, mesmo que se perca mais tempo na triagem. Foi assim que encontrámos uma fotografia original de Camilo Pessanha, um diário de uma herança, uma humilde carta de amor, milhares e milhares de “cunhas”, uma gravação feita às escondidas de uma reunião importante, ou uma pilha de manuscritos escondidos da Pide dentro de jornais. Sabemos que seria loucura pensar que podíamos ter tudo, mas tentamos. É, digamos, uma forma mais mansa de loucura. É uma humana forma de lutar contra o esquecimento, ou seja, a morte.

O Arquivo é holístico, não é parcial e disperso, mesmo que pareça sê-lo. Comunica com uma biblioteca e uma espécie de museu, ao estilo da “rapid response collection” do Museu Victoria e Alberto. São coerentes entre si e servem-se um ao outro. Do comunicado à lona de um outdoor, à fotografia de uma acção de rua, ao vídeo de uma intervenção, ao “brinde” eleitoral, podemos construir o contínuo de imagens, textos, acções, de que se faz a intervenção activista na sociedade, a ecologia do protesto ou, mais prosaicamente, e a vida quotidiana das pessoas.

O Arquivo é patrimonial, físico, biológico, analógico. Parte é também digital, mas é a materialidade das coisas que consideramos mais importante, mais conforme com os nossos sentidos e até, em muitos casos, mais duradouro. Vive do papel, do cartão, do tecido, da lona, do barro, do metal, antes, durante e depois dos electrões. O Arquivo faz parte de uma “cultura do papel”, que não vive da nostalgia, nem das saudades do pó dos livros ou do cheiro do papel, nem se afirma melhor do que a cultura digital. Afirma-se diferente. E nas suas diferenças é, às vezes, único e, para certas tarefas humanas, melhor.

O Arquivo não compete com outros arquivos, nem com nenhuma outra iniciativa ou instituição do mesmo género. Quando nos perguntam o que fazer a um espólio ou acervo, explicamos as vantagens e inconvenientes de o entregar a um outro arquivo ou ao nosso. Quando temos colecções que completam as de um outro arquivo, estamos sempre disponíveis para as trabalhar ou disponibilizar em conjunto. A tarefa de fazer uma rede da memória é colectiva e ganha com a diversidade de olhares e experiências.

O Arquivo pertence àquilo a que se chama “sociedade civil”. É autónomo, independente, e pertence aos que nele trabalham e à Associação que o gere. Não temos o fetichismo do público como a melhor forma de salvaguardar o património colectivo. Conhecemos bem demais muitas instituições públicas que, por falta de recursos ou de dinamismo, estão efectivamente mortas e que custam muito dinheiro a manter. O Arquivo funciona melhor, salva mais, organiza mais, inventaria mais, publica mais do que muitos arquivos públicos com orçamentos cem vezes maiores. Fazemos coisas que ninguém faz, nem ninguém conseguiria fazer. Um exemplo, foi o acompanhamento das eleições autárquicas de 2017 em que cerca de 1600 campanhas locais foram objecto de recolha a nível nacional. Mesmo assim, é pouco mais de metade.

O Arquivo tem uma identidade própria e, por isso, entendemos que é errada a excessiva centralização de todo o património da memória num só arquivo, perdendo-se muitas vezes a identidade da sua fundação, do seu fundador, dos seus fundos, do estilo dos que nele trabalham, e do olhar que transportam sobre a memória. Não há dois olhares iguais, não se dá a importância às mesmas coisas, não se guardam as mesmas coisas.

O Arquivo vive dos grandes e dos pequenos, dos principais e dos secundários, nada do que é humano nos é alheio. Por isso tem espólios relevantes para a história portuguesa (Sá Carneiro, Sousa e Castro, Vitor Crespo, Nuno Rodrigues dos Santos, Hattenberger Rosa, colecção da Direita Radical, revista Mundo da Canção, José Fonseca e Costa, movimento estudantil, vários sindicatos, Pedro Ramos de Almeida, comandante Covas, etc.) e uma correspondência amorosa entre uma costureira e um empregado de escritório, ou os papéis de personagens secundárias da ditadura. A nossa experiência mostra que muitas personagens tidas como secundárias são muito mais importantes do que o que parecem.

O Arquivo é sustentável. Sustentável para que não nos aconteça o que aconteceu a outros, criando-se uma desconfiança sobre os arquivos privados e o seu papel diferenciado dos arquivos públicos. Vive das contribuições dos seus associados, neste momento cerca de 300, e é uma regra básica para nós nunca gastarmos para além dos recursos que temos, nem termos despesas fixas acima das nossas possibilidades. Por isso, quem quiser ajudar-nos, pode e deve associar-se e pagar uma quota conforme as suas possibilidades.

O Arquivo é o resultado de uma actividade de amadores, com todas as vantagens e inconvenientes dessa circunstância. Por isso é visto com alguma compreensível desconfiança por parte de alguns profissionais, uns de boa-fé, outros que estão à frente de arquivos mais mortos do que uma múmia e que se ressentem do nosso dinamismo. Não cumprimos todos os standards e as melhores práticas, por falta de conhecimento e de recursos. Mas estamos a aprender depressa, e muito do que fazemos já tem em conta as regras arquivísticas. Por exemplo, temos práticas de conservação bastante eficazes, controlo da temperatura e humidade relativa, controle de pragas, etc. Digitalizamos com a resolução recomendada para os arquivos, e as nossas bases de dados são feitas de modo a serem exportadas para software mais profissional, sem se perder o trabalho anterior. Seguimos as regras de prudência, confidencialidade e protecção de dados, quando tal se justifica. Mas não nos consideramos peados pela regulação burocrática europeia, com enormes absurdos, por exemplo, quanto aos direitos de autor, o que está a permitir a algumas firmas rapaces registarem milhares de documentos, anúncios, imagens, etc., como sendo suas, e que assim passam de “órfãos” a terem uns “pais” que fazem negócio com o registo de paternidade. Não as seguimos porque não concordamos com elas e porque prejudicam, e muito, a divulgação pública, por exemplo, na Internet, de informação de interesse público. E vamos evoluir, quer do ponto de vista da organização do que temos e do que vamos recebendo, quer do ponto de vista tecnológico, sempre com a ajuda e contributo dos nossos amigos. Possuímos já uma pequena estrutura administrativa, um embrião de departamento editorial, uma pequena equipa que prepara exposições, voluntários tendencialmente responsáveis por áreas, como a música, a fotografia, a arte, a literatura, o desporto, o “tempo”, a gastronomia, ou espólios concretos, uma eficiente logística que se ocupa das recolhas, das arrumações, das compras, etc, etc

O Arquivo vive dos seus voluntários, a sua força e capacidade de realização vem dos cerca de 150 mulheres e homens, em todo o país e não só, pois temos os nossos fiéis amigos Espanhóis, Irlandeses e portugueses a viverem nos mais diversos países, que dedicam parte do seu tempo e esforço a recolher papéis, a salvar espólios, a fotografar campanhas, a ir a manifestações, a registar tudo, a inventariar documentos, a digitalizar, a fazer trabalho físico, como se diz no cartaz, “se acha que o trabalho intelectual é leve, venha trabalhar connosco”. Nem sempre é fácil, há quem não queira ser fotografado mesmo estando numa manifestação pública, há quem fique desagradado pelo que documentamos do “interior” da acção política, há quem ache que um Arquivo desta natureza deve ter anátemas e censuras, - por exemplo, não recolher elementos sobre a direita radical -, há quem corra riscos para mostrar o que está acontecer. Por exemplo, suportar o gaz lacrimogénio e as cargas da polícia para mostrar como são as manifestações dos Gilets Jaunes em Paris.

O Arquivo não depende das circunstâncias da sua formação, nem da vida do seu fundador. É hoje um trabalho de uma equipa completamente capaz de lhe dar continuidade. E tem plano B. E, se for preciso, tem plano C. No entanto, precisa de ter um enquadramento institucional que em Portugal não existe, nem em muitos países europeus, mas que existe na tradição anglo-saxónica. Precisa de uma nova lei que compatibilize a solidez patrimonial das fundações com a flexibilidade das associações culturais sem fins lucrativos, que permita manter o património seguro e usar a grande força do trabalho voluntário e da dedicação pro bono. Precisa também de uma lei das fundações que não seja feita a pensar no fisco, nem nas grandes fundações, mas seja amigável com as pequenas e médias que estão em extinção. E que efectivamente puna as fundações fraudulentas que estão a ocupar indevidamente o espaço cívico de quem está a dar a todos aquilo que era privado. Precisa, naturalmente, de mais recursos, e, para isso, conta com as contribuições dos associados.

Por tudo isto, mais do que um arquivo e uma biblioteca, o EPHEMERA é um movimento, um movimento pela memória, logo, um movimento pela democracia.

Sejam bem-vindos ao EPHEMERA e obrigado.

1 comentário:

  1. Enquanto existir memória não há solidão E quando não tiver mais memória, que importância terá a solidão ? Recordar é viver.
    No Brasil, 8 em cada 10 Brasis nasceram após 1960.
    Pais e Mães não souberam o que se passou. E os filhos muito menos.
    Apagamentos por não mencionar.
    E atos irrelevantes para ocupar cabeças. Abraço cultural solidário do Cuca Fresca e Memória de Gari zedosrios José de Oliveira Luiz,82.
    Parabéns Zé e equipe. zedosrios@gmail.com. Viseu.

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