terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Meditações - a hora solar cai no centro da alma

Na estação de helsínquia, onde lenine esperava o comboio do regresso, dou comigo, por entre máquinas de jogo e copos de cerveja, a invejar o bêbedo que abraça a rapariga gorda, de cabelos longos e saia curta; e riem-se, como se o amor se servisse naquele bar de consumo rápido, por entre os comboios que partem e os que chegam. A esta hora — o meio da tarde do verão finlandês - com o calor que ainda entra pelas grandes portas da estação de helsínquia, ouço a voz desse poeta que sonhou todos os rostos que se perdem e se encontram em todas as estações do mundo. No seu relógio, a hora da patagónia confunde-se com a hora de são petersburgo; a hora solar cai no centro da alma que anda ao contrário, como o relógio do bairro judeu de praga; e o poeta puxa as garrafas para a sua frente, no balcão, para que os gestos bruscos do bêbedo que se abraça à rapariga gorda não as façam cair, sujando o lugar em que, no princípio deste século que vai acabar como começou, lenine esperava o comboio do regresso. É então que uma procissão de cantores loucos atravessa o átrio; que as suas vozes se juntam para invocar a santa joana dos abismos; que um silêncio nasce, em volta do rapaz estendido no chão, que agita o corpo nos sobressaltos sonâmbulos do álcool. Por vezes, lenine sai da sua mesa para espreitar esse corpo; os viajantes olham-no das janelas, chamando-o de dentro do seu sono; e as mulheres choram, lentamente, de trás dos balcões de vidro, como se sentissem apodrecer as raízes da sua juventude. Talvez seja por isso que esse poeta partiu; e que neste balcão onde o bêbedo e a rapariga gorda se abraçavam, todos os copos estejam vazios, como se o mundo inteiro os tivesse bebido até ao fundo, na tarde sem fim de helsínquia.

Nuno Júdice

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