domingo, 29 de dezembro de 2019

De calendários e anos bissextos - o 29 de Fevereiro de 2020


Filipe II de Espanha (Fiulipe I de Portugal)

Lei de El Rei D. Filipe Segundo sobre a mudança dos dez dias do mês de Outubro que se suprimirão por causa da reformação Gregoriana. Dada em Lisboa a 20 de Dezembro de 1582 (arquivo Fernando Correia de Oliveira)


O ano de 2020 será bissexto. Isso ocorre de quatro em quatro anos, com excepções. segundo a reforma gregoriana - os anos seculares, apesar de divisíveis por 4, não são bissextos, salvo nos casos em que forem divisíveis por 400. Assim, o ano de 1600 foi bissexto, bem como o ano 2000. A próxima excepção é 2100, secular e não bissexto (a esmagadora maioria dos relógios calendários perpétuos mecânicos terão que ser acertados por essa altura).


Boa altura para recordar um texto escrito há algum tempo:

Calendários portugueses

O primeiro documento impresso em Portugal, que se conheça, é um breviário bracarense, de 1494 – contém um calendário muito especial, litúrgico, onde estão os tão necessários conceitos de Letra Dominical, Epacta ou Número de Ouro. Damos também exemplos de portugueses que construíram calendários perpétuos. E, se estiver interessado, basta ir consultar algumas dessas obras - até pode aprender a construir um.

O vocábulo "calendário" deriva do latim, calendae, ou "calendas", o primeiro dia de cada mês, assim chamado por nessa ocasião o pontífice convocar (calare) o povo de Roma para o Capitólio, onde oferecia sacrifícios a Juno e anunciava os dias da lua nova e das nonas.


A Península Ibérica, sob domínio de Roma, adoptou o calendário romano, com as várias reformas que ele sofreu, nomeadamente a decretada em meados do século I pelo imperador Júlio César (calendário juliano). Dados os desacertos entre o calendário estipulado pelos homens e os movimentos reais ou aparentes dos astros, chegou-se a alturas insustentáveis para o bom governo das sociedades. Foi o caso ocorrido em 1582, quando o papa Gregório XIII, pela bula Inter gravíssimas, de 24 de Fevereiro desse ano, mandou contar como 15 de Outubro o dia seguinte a 4 deste mês, para suprimir os dez dias que o ano do calendário dos homens já tinha em relação ao real posicionamento de estrelas e planetas.

A reforma gregoriana foi adoptada desde logo por Portugal, Espanha e alguns dos Estados italianos. Só em 1700 os protestantes alemães e holandeses aderiram a este calendário; os japoneses fizeram-no em 1873, a China em 1912 e a Rússia em 1918 (a propósito, a Revolução de Outubro de 1917, no calendário juliano, ocorreu na verdade em Novembro, no calendário gregoriano). A Grécia e as igrejas ortodoxas apenas aderiram em 1923 a um calendário que é hoje praticamente universal. Até ao início do século IV, as comunidades cristãs limitavam-se a anotar as festas e principais acontecimentos religiosos no calendário romano vigente. Mas, a pouco e pouco, começaram a organizar calendários próprios.


O calendário cristão usou-se na Península Ibérica desde a mais remota antiguidade, segundo se depreende das disposições dos Concílios de Elvira (c. 303), de Braga (561, 572 e 675) e de Toledo (589 e seguintes), bem como da Crónica de Idácio de Chaves (século V) relativamente ao culto dos mártires e às datas da celebração da Páscoa e das outras festas móveis.

Os mais antigos calendários hispânicos existentes são os das igrejas de Carmona e de S. Pedro de la Nave (séculos VI-VII). Desde o século X são bastantes os que se encontram anexos aos livros litúrgicos.

No território que é hoje Portugal, os mais antigos calendários cristãos que se conhecem são do século XII, como o do Missal de Mateus (Braga, c. 1176), de Santa Cruz (Coimbra, finais do século XII) e de Alcobaça. São, obviamente, todos manuscritos.

Além de indispensáveis para a vida litúrgica e social, os calendários têm grande importância para a cronologia, sobretudo na Idade Média, quando os acontecimentos eram datados quase sempre em relação a festividades do dia em que ocorriam. A confusão aumenta quando se sabe que o dia de celebração de algumas festas variava de calendário para calendário, especialmente quando eram de ritos diferentes.

A maioria dos países de língua latina adoptou os nomes dados pelos romanos aos dias da semana, inspirados nos nomes dos planetas-deuses: Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vénus e Saturno. Com efeito, em francês ficou: lundi, mardi, mercredi, jeudi, vendredi, samedi, com a excepção do domingo (dimanche). Mas, para este dia, o vocábulo é relativamente moderno, pois a tradição francesa atribui-lhe o nome de die soleil. Em espanhol ou italiano encontra-se solução semelhante. Já nos países de língua inglesa se adoptaram nomes (embora latinizados) do panteão teutónico. Exceptuando "Saturno" (saturday), "Sol" (sunday) e "Lua" (monday) tem-se Tiu (tuesday, Marte), Woden (wenesday, Mercúrio), Thor (thursday, Júpiter) e Freya (friday, Vénus).

A língua portuguesa é a única latina que contém excepções. Os dias numerados (segunda, terça,...) são de origem obscura. É possível que seja uma influência da contagem dos dias pelo calendário judeu. Tanto assim que a palavra "sábado" deriva directamente de "sabbath". Apenas domingo, (dia do Senhor) seria a concessão à raiz cristã. Já no capítulo da impressão, o mais antigo incunábulo latino que se conhece em Portugal é o Breviarium Bracarense, datado de 12 de Dezembro de 1494, pelo tipógrafo alemão João Gherline. Este livro, de que só se conhece o exemplar existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, é primorosamente impresso em caracteres muito pequenos, a preto e a vermelho. Julgam os bibliógrafos que de Braga passou esse impressor à vila de Monterrey, na Galiza, onde terminou a impressão do Manual Bracarense (Manual Sacramentorum cum brevi Compilacione Missarum, et aliquorum Festorum, secundum consuetudinem Metropolitanae Ecclesiae Bracarensis), em 10 de Junho de 1496.

Com Calendário e Tábuas Cronológicas, este Breviário terá sido encomendado pelo sínodo diocesano da cidade, reunido em Dezembro de 1488, para obstar às dificuldades que advinham da escassez de livros litúrgicos, todos eles até então manuscritos.

O Breviário Bracarense, aparte ter a primazia na impressão quanto a textos deste tipo em Portugal, reúne ainda uma outra característica interessante: representa a liturgia privativa e especial da Igreja primacial portuguesa, diferente da liturgia romana e que sobreviveu a todas as tentativas unitárias da Santa Sé. Por outras palavras, está-se perante um calendário que é excepção, e não a regra.

Rito bracarense

Braga, como diocese, data do século III, sendo conhecido do primeiro período da sua história apenas o bispo Paterno, cujo nome figura nas actas do I Concílio de Toledo de 400. Já neste primeiro período tinha dignidade metropolítica, com jurisdição sobre todo o noroeste da Península (Galécia), tendo dela dependentes os bispados de Conímbriga, Viseu, Dume, Lamego, Porto e Egitânia.

Quando da invasão muçulmana, Braga ficou sob o domínio do novo poder político-religioso e os seus bispos passaram a residir em Lugo. Após a reconquista cristã, mesmo antes da fundação da monarquia portuguesa, foi definitivamente restaurada a arquidiocese (1070). Desde que o bispo D. Pedro ali se fixou, iniciou-se uma cadeia ininterrupta de 56 arcebispos, até hoje.

Entre as particularidades mais notáveis da Sé Catedral de Braga, considerada das mais antigas da Península Ibérica, está a de possuir um rito litúrgico próprio (bracarense, influenciado pela doutrina gnóstica de Prisciliano, vinda do século IV); quando da reforma litúrgica tridentina, Braga pôde manter os seus livros, por terem mais de 200 anos e pelo empenho que nisso teve o arcebispo D. frei Bartolomeu dos Mártires; depois de alguns episódios de tensão resultantes da tentativa de introduzir o rito romano, o bracarense foi restaurado pelo Sínodo de 1918: os novos breviário e missal, aprovados por bula de 1919 e 1924, respectivamente, tornaram-se obrigatórios em toda a arquidiocese em 1924. O rito bracarense permanece válido, mesmo depois da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, mas o seu uso tornou-se facultativo, aquando desta reforma, em 18 de Novembro de 1971.

Já referimos o Breviarium Bracarense, o mais antigo documento impresso em Portugal de que há conhecimento (1494). Com reedições detectadas em 1498, 1512, 1528, 1549, 1634, 1724 e 1920-1922, a obra mais o seu respectivo Calendário representam a liturgia privativa e especial da Igreja primacial portuguesa, que sobreviveu a todas as tentativas unitárias da Santa Sé.

Em 1497, três anos depois da primeira edição do Breviarium Bracarense, Nicolau de Saxónia imprimia em Lisboa o Breviarium Compostellanum, por encomenda do Cabido de Santiago de Compostela. Os dois únicos exemplares que terão chegado aos nossos dias estão em Madrid e encontram-se incompletos.

No entanto, desta raríssima edição de Lisboa não se perdeu uma bela página, ilustrada, com a regra para determinar a Letra Dominical.

Recorda o padre Avelino de Jesus da Costa no Dicionário de História de Portugal que "para resolver as dificuldades resultantes da determinação das festas móveis, dos dias da semana e de outros problemas cronológicos respeitantes a determinado ano, ou vice-versa, conhecer este quando são dados os elementos anteriores, têm-se publicado, desde longa data, diversos calendários perpétuos".

Para o quotidiano das comunidades, na Idade Média e praticamente até à actualidade, o único calendário era o litúrgico. Achar métodos de "acertar" com a Páscoa, por exemplo, que é a festa móvel que determina quando ocorrem todas as outras, provocou ao longo dos séculos grandes controvérsias entre as várias Igrejas cristãs. A Páscoa pode ocorrer tão cedo como 22 de Março e tão tarde como 25 de Abril, havendo assim 35 dias possíveis onde este domingo especial pode cair.

O cálculo de calendários perpétuos consegue-se a partir do chamado "método metónico do ciclo lunar" ou "ciclo dos números de ouro".

No ano 432 A.C., Meton, um astrónomo ateniense, descobriu que 235 lunações (ou seja, meses lunares) correspondem a 19 anos solares. Por outras palavras, depois de um período de 19 anos solares as novas luas ocorrem de novo nos mesmos dias do ano solar. Assim, Meton dividiu o calendário em períodos de 19 anos, que ele numerou de 1, 2, 3, 4, etc. e até 19, assumindo que as novas luas iriam cair nos mesmos dias indicados pelo mesmo número. Esta descoberta teve tal agrado entre os atenienses que o número atribuído ao ano corrente no Cíclo Metónico era então escrito em caracteres de ouro numa coluna do templo, daí ser considerado o Número de Ouro do ano.

Mas os calendários dos homens nunca conseguiram ser perfeitos e adequar-se completamente ao movimento real ou aparente dos astros. Daí o acerto de meses com 30 e 31 dias, de quatro em quatro anos os meses de Fevereiro com 29 dias (anos bissextos). Ou os complicadíssimos cálculos para calcular a Epacta, cuja definição é a idade da lua a 1 de Janeiro de um determinado ano.

O método metónico foi adoptado pela Igreja até 1582. Assume-se geralmente que a Última Ceia ocorreu no festival judeu do Peshva, que se celebrava sempre no 14º dia da primeira lua do velho calendário judeu. Ora, sendo assim, Cristo teria ressuscitado dos mortos a um domingo, 17º dia da chamada lua pascal. Com o passar dos tempos foi-se tornando cada vez mais evidente que a lua pascal do ciclo metónico estava a perder toda e qualquer relação com a verdadeira lua pascal. O papa Gregório XIII encarregou em 1576 um grupo de astrónomos de reformar o calendário. Este grupo elaborou uma tábua de equações para demonstrar as mudanças necessárias na Epacta para preservar as relações entre os calendários eclesiástico e astronómico. Nasceu o calendário gregoriano, que ainda hoje nos rege.

E chegamos à Letra Dominical: influenciados por um método herdado dos Romanos, os cristãos passaram a marcar os dias dos seus anos de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro por ciclos contínuos de sete letras (de A a G). 1 de Janeiro seria A, 2 de Janeiro seria B, e assim por diante. Se 1 de Janeiro calhasse a um domingo, todos os dias marcados com um A também seriam domingos.

É esse método que consta dos breviários medievais. Assim, clérigos e leigos, nas suas respectivas comunidades, podiam saber quando era chegado o tempo de festa ou o tempo de jejum.

Calendários perpétuos

"O livro que maior número de edições tem tido e continua a ter, aquele de que ninguém prescinde, quer seja rico ou pobre, grande ou pequeno, sábio ou ignorante, homem ou mulher; quer seja juiz, militar, sacerdote, professor, negociante, lavrador, fabricante ou operário; aquele que pela sua utilidade no uso da vida é o primeiro guia doméstico, esse livro é o calendário ou reportório". É assim que Augusto Luso da Silva, professor de Cosmografia, Geografia, Cronologia e História no Liceu Central do Porto, inicia o seu "Cavaco em lugar de prólogo" da obra "Cronologia Doméstica ou Conhecimentos úteis a todas as pessoas sobre o calendário e o seu uso" (Porto, 1895). "E, contudo — prossegue ele — esse livro, que se encontra em todas as casas, que se vende por todas as ruas e em todas as praças, que todos compram para o seu governo, é por muitos ridicularizado e até desprezado, servindo-se dele a cada momento; esperando este, no fim do ano, a mesma sorte que esperam quase todos os jornais políticos".

Na sua "Cronologia Doméstica", Augusto Luso da Silva explica o Ciclo Lunar, dá o método de achamento do Número de Ouro num ano qualquer, explica o conceito de Epacta (a diferença de dias que há entre os anos solar e lunar no princípio de um ano solar qualquer), dá o método de achamento da epacta, conhecido o número de ouro. E mostra como achar o dia de lua nova em qualquer mês, ou o dia da semana num dia de qualquer mês de um dado ano. Além disso, revela o método de achamento do domingo de Páscoa, a festa móvel que determina todas as outras do calendário católico.

Na segunda parte da Cronologia Doméstica, o professor liceal do Porto trata das marés, mostrando como se pode achar a hora de preia-mar num dia qualquer. "Estes conhecimentos poderão entreter agradavelmente as pessoas que vivem próximas do mar; hoje, principalmente, que está em uso, e com razão, as famílias de quase todo o país, nos meses de Agosto, Setembro e Outubro, retirarem-se das cidades, vilas e aldeias para as praias, gozando o descanso dos trabalhos anuais como preceito higiénico...".Há cem anos, ainda não se tinha descoberto o Algarve, mas a burguesia ascendente tinha começado a invasão do litoral.

Já o "Calendário Perpétuo de António Cabreira, nos sistemas juliano (era cristã) e gregoriano, inventado em 7 de Março de 1915", editado pela Academia das Ciências de Portugal (Lisboa, 1915), é um magro opúsculo, de três páginas. António Tomáz da Guarda Cabreira de Faria e Alvelos Drago da Ponte, natural de Tavira, foi um militar controverso da transição da Monarquia para a República. Matemático e escritor, deixou vasta obra científica e política.

Partindo do princípio de que "O dia inicial de um ano qualquer é dado pelo resto da divisão por 7 da soma do mesmo ano com o número de bissextos decorridos até ele", Cabreira fornece assim um calendário perpétuo, com tábuas dos dias iniciais de cada ano, dos anos comuns e dos bissextos.

Autor ainda de um "Calendário solar e lunário perpétuos" (1918), de "Esquemas algébricos dos calendários solar, lunar e luni-solar" (1928) e de uma "Teoria de um calendário Luni-solsticial" (1931), Cabreira escreveu também a "Determinação exacta da data da Morte de Jesus Cristo" e foi fundador da Academia das Ciências de Portugal (já desaparecida, não confundir com a Academia das Ciências de Lisboa, ainda existente).

Personalidade única, marcou, juntamente com outra figura célebre do início do século XX, o famigerado padre Hymalaia, de quem foi amigo, uma certa escola de ciência portuguesa, muito virada para a prática e preocupada em "educar o povo". Deve-se a António Cabreira o Primeiro Congresso Arqueológico Nacional, as comemorações da batalha de Ourique e os centenários da Ordem de Cristo, da passagem do Cabo Bojador e de diversas figuras históricas. Monárquico ultramontano, tem problemas com a República. Fundador da Legião Lusitana, percursora da Legião Portuguesa, também se desentende com o Estado Novo, chegando a navegar nas águas do "reviralho", da oposição a Salazar.

Em 1943, numa edição aparecida na Régua, surge um "Calendário Perpétuo, sistema único e acessível a toda a gente, abrangendo um período de 400 anos, desde 1801 a 2200, e contendo os calendários e datas da Páscoa correspondentes a cada um dos anos".

Coordenado por João C. de Lacerda, "fruto de aturado trabalho", este método promete a quem quer saber o dia da semana de uma determinada data: "nada mais há a fazer do que procurar no índice o respectivo ano, ao lado do qual vem o número do calendário correspondente, com a vantagem ainda de nos indicar também a data da Páscoa".

Depois de explicar como surgiu o calendário gregoriano, aclara-se a maneira de calcular outras festas móveis em relação à Pascoa, dá-se a noção dos anos bissextos — para se saber se um ano tem 366 dias, divide-se por 4 o número que o representa. Se não ficar resto, é bissexto; mas, se ficar, ele indicará o número de anos decorridos depois do último bissexto. Ressalta-se que os anos seculares, apesar de divisíveis por 4, não são bissextos, salvo nos casos em que forem divisíveis por 400. Assim, o ano de 1600 foi bissexto, bem como o ano 2000.

Depois, o Calendário Perpétuo lança-se num "Índice dos anos com os números dos calendários correspondentes e das datas da Páscoa". Ainda hoje, se se consultar, bate certo!

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