quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O terramoto de 1 de Novembro de 1755 e a relojoaria grossa em Portugal


Pormenor do Paço da Ribeira, com a torre do relógio, no painel de azulejos sobre Lisboa, produzido anos antes do terramoto (Museu do Azulejo)

Sobre o terramoto de 1 de Novembro de 1755, escrevemos em História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003):

[...] Que grau de intensidade teve? Quanto tempo durou? Que outras regiões foram afectadas? O que foi verdadeiramente destruído directamente por ele? Qual o impacto que teve nas mentalidades portuguesa e europeia? É que as lendas e lugares comuns sobre o maior cataclismo natural de que há registo no país continuam a ter força de lei. Para uma História do Tempo e da Relojoaria em Portugal, este foi também um tempo de mudança. Radical.

Garante-nos o olisiponense Matos Sequeira ser falso que o terramoto de 1755 tenha arrasado completamente a Baixa e muitos outros bairros de Lisboa. “Os estragos têm-se exagerado bastante”, diz ele. (85) “Pior do que o abalo propriamente dito foi o incêndio que, durante cinco noites e cinco dias, lavrou na cidade; e creio que pior do que isso tudo foi o sargento-mor José António Monteiro de Carvalho – o famigerado Bota-Abaixo – que, à picareta e à bala razoirou toda a Baixa. O Paço da Ribeira foi metralhado; os camartelos pombalinos acabaram com o resto”.

Terá sido o terramoto, o incêndio ou o Bota-Abaixo a fazerem desaparecer a efémera Torre do Relógio que D. João V encomendara cerca de vinte anos antes ao arquitecto italiano Canevari, exactamente para o Paço da Ribeira?

O cataclismo do Dia de Todos os Santos reduziu, directa ou indirectamente Lisboa a um montão de ruínas fumegantes. Mas a desgraça terá tido os seus efeitos positivos, no capítulo do planeamento e ordenamento da malha urbana, que sem ele nunca teria sido possível efectuar. Um folheto publicado logo após o terramoto reconhecia isso, lançando o paradoxo: “Não poderia ter sucedido a Lisboa desgraça mais feliz”. O fenómeno deu, por toda a Europa, origem a copiosas literatura e iconografia – as elites, os filósofos, os políticos, os escritores e artistas, desde a Alemanha aos Países Baixos, desde a Suécia à França, passando pela Itália, Suíça ou Espanha, gente como Talleyrand ou Voltaire, Goethe ou Kant, Humboldt ou Leibniz especularam sobre ele, pretendendo tirar dali lições sociológicas, políticas, para o futuro da Humanidade. (86)

Em Portugal, também se tentou um “terramoto” nas mentalidades. Já se sabia que uma das raras tentativas de implantar no país uma indústria relojoeira foi feita pelo Marquês de Pombal. A par da Real Fábrica das Sedas, instalada na zona lisboeta do Rato, o primeiro-ministro de D. José contratou mestres relojoeiros franceses para administrarem, em regime de concessão, uma Real Fábrica de Relógios, de que trataremos mais adiante. O curto e atribulado período de laboração da fábrica não deixou rasto nem tradição. Sintomaticamente, a sociedade portuguesa não se dava bem com as regras da mecânica, da micro-mecânica, da precisão.

Mas Sebastião José de Carvalho e Melo era um português muito especial. A sua mentalidade estava verdadeiramente “fora” do todo nacional. Se mais uma prova disso fosse necessária, ela aí está:

Na sequência do terramoto de 1 de Novembro de 1755, o marquês faz emitir para todos os bispados do reino um inquérito a que os párocos respectivos deveriam responder com a brevidade possível.

Os destinatários são os arcebispos de Lacedemónia, Évora e Algarve e os bispos do Porto, Coimbra, Guarda, Lamego, Viseu, Miranda, Leiria, Portalegre, Elvas e Tomar.

Esse inquérito, emitido a 20 de Janeiro de 1756, é de um rigor científico e metodológico inédito para a época, revelando muito da mentalidade de Sebastião José, um “iluminado”. Vale a pena transcrevê-lo:

“A que horas principiou o terramoto do primeiro de Novembro e que tempo durou?

Se se percebeu que fosse maior o impulso de uma parte que de outra parte v.g. do norte para o sul ou pelo contrário. Se parece que caíram mais ruínas para uma que para outra parte.

Que número de casas arruinaria em cada freguesia, se havia edifícios notáveis e o estado em que ficaram.

Que pessoas morreram, se algumas eram distintas.

Se o mar vazou primeiro ou encheu, quantos palmos cresceu mais do que o ordinário. Quantas vezes se percebeu o fluxo e refluxo extraordinário.

Se se reparou que tempo gastaria em baixar a água e quanto em tornar a encher.

Se abriu a terra algumas bocas, o que nelas se notou e se rebentou alguma fonte de novo. Que providências se deram imediatamente em cada lugar pelo eclesiástico, pelos militares e pelos ministros.

Que terramotos têm repetido depois do primeiro de Novembro, em que tempo e que danos têm feito.

Se há memória de que em outro tempo houvesse outro terramoto, e que dano fez em cada lugar.

Que número de pessoas tem cada uma das freguesias, declarando se puder ser quantas há de diferente sexo.

Se se experimentou alguma falta de mantimentos.

Se houve incêndio e que tempo durou e que danos fez.”

O historiador José Augusto dos Santos Alves deparou com o inquérito e incluiu-o, bem como as respostas, na sua tese de doutoramento. Foi o primeiro, aliás, a trabalhar os documentos. (87)

O conjunto das inúmeras respostas, vindas de todo o território, com informações preciosas sobre o estado da relojoaria pública no reino (relojoaria de torre, grossa ou férrea, estivesse ela em edifícios religiosos ou laicos, propriedade do Estado central, dos municípios, ou de privados) “é o evidente testemunho da mudança que se processa no reino sob o ângulo de um outro modo de encarar o tempo, ou seja, a substituição do tempo canónico pelo tempo do relógio”, diz o historiador.

Fora do contexto do inquérito, Pombal já tinha sido informado, pontualmente, dos estragos que ele causara noutras paragens. Em carta de 15 de Novembro de 1755, o governador da ilha da Madeira, Manuel de Saldanha e Albuquerque, informa que o terramoto de 15 dias antes se fizera sentir na ilha pela nove horas da manhã locais, sendo acompanhado de maremoto, “ocasionando inundações e devastações sem causar vítimas”. Em Carta Régia de 16 de Dezembro de 1755, D. José I fazia saber aos vereadores e oficiais da Câmara da cidade de São Paulo do “terramoto tão funesto que em cinco minutos de tempo arruinou os Templos, Palácios, os Tribunais e as Alfândegas com as mercadorias que nelas se achavam para pagar direitos e a maior parte dos edifícios particulares de Lisboa”. E o monarca apelava aos vassalos daquela terra para que procedessem à recolha de donativos para a reedificação da capital.

Caso curioso, nessas paragens mais longínquas, o fenómeno terá sido “sentido” de formas bem diferentes: em carta de 12 de Maio de 1756, o arcebispo da Baía, D. João Franco de Oliveira, garante que o sismo de 1 de Novembro anterior se tinha feito notar por ali, pois ocorrera “alteração nos mares” e as águas chegaram “onde nunca se viram”, garantindo que o mesmo se passou em toda a costa pernambucana. Já o Chanceler da Relação da Baía, Manuel António da Cunha Soto-Maior, em carta para Lisboa, de 20 de Maio de 1756, garantia que o sismo não se fizeram sentir de nenhum modo do outro lado do Atlântico.

Onde, naturalmente, o fenómeno foi bem sentido foi em todo o norte de África. Há, por exemplo, uma Relação do Grande Terramoto que houve na Praça de Mazagão no primeiro de Novembro de 1755.

Voltando ao inquérito lançado por Pombal, a hora do desencadear do sismo apresenta-se, na maioria dos casos, pelas nove horas e trinta da manhã, embora haja respostas que vão das nove às dez horas. O espaço de tempo da duração do fenómeno varia entre os 3-4 minutos e o quarto de hora. “Para lá da existência em algumas respostas, de manifestações do tempo canónico, anote-se, praticamente em todo o reino, como facto que não deixa de ser significativo do processo de mudança de paradigma, a homogeneidade do ‘tempo do relógio’ e a sua necessidade como referente”, faz notar Santos Alves.

Talvez fosse mais a grelha racional do inquérito do marquês a obrigar à “laicidade” das respostas e não tanto a mudança de mentalidades dos párocos do reino, arriscaríamos nós…

“Nesta terra [...] o relógio anda poucas vezes certo e por isso não podemos averiguar as horas”. A resposta, vinda da localidade de Melo, Gouveia, é datada de 7 de Maio de 1756.

De Agadão, Aveiro, vem o seguinte lamento: “Primeiramente, quando ao primeiro interrogatório, como nesta freguesia não há relógio, não se pode averiguar ao certo às horas que principiou e o tempo que durou [...]”.

De Veiros, Estremoz, chegava esta: “Principiou entre as nove e dez horas da manhã pelo relógio da torre desta vila, durou oito minutos pouco mais ou menos [...]”

Para além do lamento de Melo, Gouveia, que referimos no início, registe-se uma outra resposta no mesmo sentido, vinda de Almaça, Viseu: “Esta miserável terra, como nela não há relógio, alguns fregueses que tiveram notícia deles não sabem a que horas foram e nem sabem quantos foram [...]”.

A esmagadora maioria das respostas enviadas fala sem rodeios da hora a que o fenómeno teve início, quanto tempo durou, com ou sem referência à máquina do tempo que serviu (quando a houve) para auxiliar nesse cálculo. Veja-se a informação que chegou de Linhares, Celorico da Beira: “Pelas nove horas e meia [...], dando notícia dele primeiro o relógio sito na torre do castelo desta vila com o seu toque movido pelos impulsos do tremor e isto pelo espaço de sete minutos pouco mais ou menos [...]”.

Excepções, quanto ao cálculo da duração do fenómeno recorrendo ao tempo religioso, são, por exemplo, as de Campo de Víboras, Vimioso (“Às nove horas e meia, mais ou menos, principiou [...] e passados dois credos tornou a repetir [...]”) ou de Mangualde (“Eram nove e meia [...] começou a terra a tremer, cujo tremor e abalo duraria pelo espaço de uma estação [...]”).

Uma questão interessante que se pode colocar, perante as respostas dadas, a partir das “pessoas em terras de relógio”, é a de se saber quantas dessas máquinas teriam mostrador com ponteiro dos minutos. A maioria, nessa altura, arriscaríamos nós, teria apenas um único ponteiro, o das horas, dando sonoramente, quando muito, as horas, meias horas e quartos. Seria relativamente fácil determinar o início do terramoto (já que ele terá coincidido com a meia hora) mas já não terá sido tão evidente o cálculo da sua duração – as respostas são díspares, e vão desde os 3-4 minutos até ao quarto de hora.

De qualquer modo, Santos Alves sublinha: “Se, por um lado, se assinala a coincidência horária no desencadear do sismo e a existência de relógio na torre de grande número de povoações, por outro, verifica-se a mágoa acerca do relógio que ‘anda poucas vezes certo’ ou o lamento daqueles em cuja terra ‘não há relógio’ que ajude à resposta correcta. A existência, ainda, de informação estribada nas ‘pessoas que estavam em terra de relógio’ potencia, em tempo de mutação, as anteriores observações e a necessidade de uma medida de tempo análoga”. “Pode afirmar-se que, no pombalismo, existe uma evidente percepção de como governar a sociedade, que se articula com uma nova noção de tempo, que já não se rege pelo sino do campanário mas pelo relógio da torre, i.e., um tempo que se adequa ao espaço físico, mas sobretudo ao espaço das relações e, obviamente, da comunicação e da informação”, defende o historiador.

Trata-se de uma reorganização da sociedade no seu todo político, social, administrativo e onde a medição do tempo canónico é trocada pela medição mecânica do tempo.

Neste sentido, o inquérito pombalino acerca do sismo de 1755 “dá ao tempo uma outra significação que não a intimamente escatológica, mas antes a de uma nova concepção da intemporalidade, em harmonia com um outro mundo de vida que se avizinha”.

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