TIPOS DA TERRA
A Rafael Bordalo Pinheiro
Desembarcaram num largo. Era o ponto mais
central da terra – «a praça». Aqui e ali, ao acaso,
algumas árvores enfezadas, quase tudo olmos
brancos, vegetavam a medo, com os troncos
protegidos por velhas grades de madeira,
desmanteladas. Era um terreiro vasto, muito chato,
com casas em volta – o que na vila havia de melhor
em construções. Ficava ao meio o pelourinho,
exótico, mutilado, de uma pedra grosseira e muito
negra. Era uma alta coluna de oito faces, com o seu
anel de ferro ao meio e uma argola pendente do
anel. A coluna que se elevava sobre um pedestal de
três degraus, em hexágono, terminava ao alto num
grande X de pedra deitado horizontalmente. Um
espigão de ferro, de três gumes como os floretes de
esgrima, irrompia hostilmente do meio do X,
perfurando o espaço. Em volta, a casaria era triste,
sem estilo, sem gosto, sem cal. Algumas pedras de
armas em velhas paredes decrépitas,
desequilibradas, hidrópicas, atestavam aristocracias
remotas, agora de todo extintas. Ao alto,
dominando a negrura chamuscada dos telhados, o
velho castelo, romano de origem, fazia tristeza com
as suas ameias derrocadas e as grossas paredes em
ruínas. Ao lado do castelo erguia-se destacadamente a velha torre do relógio, de uma
arquitectura primitiva. Tinham dado onze horas,
mas eram apenas sete: aquele «estafermo» é que
não andava nunca direito. De dia ninguém o
entendia, com o seu ponteiro de ferro girando num
mostrador sem letras, de uma pedra azulada. De
noite fartava-se de badalar, alvoroçando a
povoação como se fosse a fogo, ora atrasado, ora
adiantado, dando meia-noite quando eram quatro
da tarde, e meio-dia mal despontava o Sol.
Trindade Coelho, Os Meus Amores
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