1.
da vila só recordavam
as cortinas de renda branca na janela
as pedras as pedras a areia muito branca
os cabelos grisalhos diante do televisor
as pessoas no terreiro
falavam espanhol as pessoas
traziam crianças loiras que choravam
era meio dia
o relógio da torre andava sempre certo
o empregado recebia a despesa
paga em pesetas porque a fronteira era perto
atravessava-se o rio e era lá
mas o ferry-boat não partia nunca
porque o rio estava assoreado
e era preciso uma draga e isso
custava o dinheiro que ninguém tinha
por detrás das cortinas as velhas
cheiravam a cera a madeira queimada a
muitos anos de espera
nem elas sabiam porquê ou por quem
em dias de nortada o vento
trazia-lhes o cheiro da praia
a que já não iam ou iam
sempre vestidas de negro
e voltavam para casa com os ouvidos cheios
dos gritos dos rapazes que lhes chamavam
gaivotas negras
2.
O primeiro homem que as beijou
cheirava a cordas e a peixe
mas depois na missa
ouviram dizer que era pecado e
nunca mais voltaram à praia
ou se voltaram
nem sequer olharam de frente para o mar
com medo das tentações
uma noite a caravana do circo
levou consigo o homem que
cheirava a cordas e a peixe
dizem que um dia voou do trapézio
e se esfumou no ar
mas outros afirmam que é tudo mentira
e que os tigres o comeram
num dia em que a ração demorou a chegar
e o calmante não funcionou
outros ainda
que anda vestido de malabarista
envergonhadamente animando feiras e
crianças gordas
só elas sabem que o homem que
cheirava a cordas e a peixe
procurou asilo dentro dos seus corações
dividindo-se entre ambas
e é ele que olha as ruas
de cada vez que elas abrem as janelas
e a cortina branca fica a balançar
com o vento norte
(Caminha, 1992)
Alice Vieira
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