Há 22 anos, mais precisamente a 27 de Abril de 1997, a revista dominical do PÚBLICO trazia uma reportagem nossa sobre Charles Ralph Boxer, feita no seu retiro no Hertfordshire. Aquele que é considerado por muitos como o maior historiador estrangeiro sobre o período português da Expansão, viria a falecer 3 anos depois e era a última vez que recebia jornalistas em sua casa.
Temos sido solicitados por vários investigadores para tornar acessíveis online textos que produzimos há duas décadas sobre Boxer. Mão amiga enviou-nos agora, depois de uma busca nos Arquivos do PÚBLICO. Eis o resultado:
Uma visita ao mais importante historiador estrangeiro da época dos Descobrimentos
No vale encantado de Charles Boxer
Fernando Correia de Oliveira
A quem se aproxima dele, ainda hoje abre os olhos para gentes, terras e tempos remotos, como se abrisse uma caixa de especiarias. Charles Ralph Boxer, de 93 anos, o mais importante historiador estrangeiro que se debruçou sobre os Descobrimentos portugueses, vive estoicamente o seu Inverno na casa do Hertfordshire. Do que lhe faltou escrever, apenas lamenta não ter feito uma biografia do padre António Vieira, figura que admira sobre todas. A morte da mulher, a diminuição física, a separação da biblioteca de valor incalculável, marcam este antigo agente secreto, um agnóstico que um dia ajudou à beatificação de alguns mártires.
No Golden Valley de Little Gaddesden, por entre florestas, canais e campos de golfe, os pintassilgos, chapins, gaios, toutinegras e picapaus unem-se no silêncio, protegidos pelas copas das árvores, enquanto uma tempestade de chuva, vento e trovoada se abate por várias horas sobre toda a região, deixando-a sem electricidade.
Numa "cottage" típica deste "country" inglês, em pleno Hertfordshire, a 45 minutos de comboio de Londres, um velho de 76 anos vai lendo em voz alta o "Independent", com a pouca luz natural que resta neste fim de dia diluviano.
Tem de falar bem alto, porque o barulho da chuva e dos trovões é intenso. Mas também porque o seu único ouvinte, quase cego, está muito surdo. Enterrado no outro sofá desta sala de estar forrada de livros, Charles Ralph Boxer, de 93 anos, acena com a cabeça, sorve de novo o chá, dá uma dentada numa bolacha. E diz ao seu discípulo e amigo de meio século, James Cummins: "Estou muito preocupado. Eles vão tomar conta de Macau antes de 1999".
Cummins acabara de cumprir mais um capítulo do seu ritual quase diário, sempre que vai de Londres até casa do mestre - ler a Boxer o único jornal que continua a entrar em sua casa. "O `Times', desde que o Murdoch o comprou, já não é a mesma coisa", diz o historiador.
Cummins relatava a onda de criminalidade que nos últimos meses tem afogado o pequeno território que Portugal administrará até 20 de Dezembro de 1999. E lia no jornal que as autoridades chinesas tinham mandado gente a Macau, "para ajudar os portugueses". Pressentindo em tudo isto técnicas de provocação, Boxer, um antigo agente secreto, é peremptório: "Depois de Hong Kong, Pequim não vai esperar mais dois anos e meio. Se tiver pretexto, avança sobre Macau."
Paralisado do lado esquerdo, fortemente abalado pela morte da mulher, Emily Hahn, ocorrida em Fevereiro em Nova Iorque, aos 91 anos (ver "Um século de aventuras"), Charles Boxer "tem dias", como explica o seu amigo Cummins, tal como ele professor reformado da Universidade de Londres. "Viveram muitos anos separados pelo Atlântico, mas ninguém diria que o desaparecimento de Emily afectaria Charles tão profundamente", diz.
No dia seguinte, pela manhã, já o sol aparece por entre as nuvens, coelhos e veados observam de longe os golfistas de domingo, os donos dos "pubs" dão de comer aos cisnes que singram pelos canais, enquanto bandos de patos selvagens apontam em seta os caminhos do poente.
Quando o jornalista lhe pergunta pelo futuro de Macau, Boxer volta às suas conhecidas discrição e cautela. E cita um provérbio japonês: "Quando os homens falam do futuro, os corvos começam a rir." Mas não deixa de admitir a sua preocupação sobre um pequeno pedaço da China a que dedicou anos de investigação e que continua a amar como nenhum outro.
O interesse de Boxer pelo império colonial português começa "pela porta das traseiras", como ele explica. Ainda militar, em serviço no Extremo Oriente, a sua primeira paixão é o Japão e a sua História. "Só que, ao trabalhar nisso, cedo compreendi que Portugal fazia parte dela e que as características do império português eram únicas e valia a pena serem estudadas."
A polémica com Salazar
"Os Portugueses deixaram uma imagem fortíssima nos lugares onde estiveram, não interessa onde. A sua marca de expansão foi próxima da espanhola, com o mesmo cunho religioso, mas enquanto estes persistiram no lema `pela espada e pela cruz', Portugal foi mais brando, falava de ir `pela esfera e pela cruz'. As expansões holandesa e britânica não produziram a miscigenação lusa, por exemplo", diz este pioneiro na história comparada dos primeiros imperialismos.
Um livro seu, "Relações Raciais no Império Colonial Português 1415-1825", escrito em 1963, provocou acesa polémica com Armando Cortesão e só foi publicado em Portugal em 1977. Boxer citava, logo no início da obra, uma frase de Salazar, que o ditador proferira pouco antes numa entrevista à revista norte-americana "Life": "Estes contactos jamais envolveram a menor ideia de superioridade racial ou discriminação... Pode-se assim dizer que a característica principal da África portuguesa - apesar dos esforços empregados em muitos sectores para atacá-la com palavras e acções - é a primazia que sempre demos e continuaremos a dar à intensificação do valor e da dignidade do homem, sem distinção de cor ou credo, à luz de princípios da civilização que nós levamos às populações que em todos os sentidos estavam aquém de nós." Boxer, no seu livro, desmonta, com a independência de historiador descomprometido, apoiado em documentos coevos, a atitude racial lusa, que não diferiu assim tanto da dos outros impérios coloniais.
"O meu erro foi citar Salazar. Ele ficou furioso e usou o Armando Cortesão para me atacar", continua ainda hoje a dizer Boxer, que sempre fugiu da polémica política. Quanto à sua amizade (estragada) com o ditador, não confirma nem desmente. Mas a obra de Boxer, até então usada pelo regime como parte da glorificação das Descobertas, passou a estar proscrita e o seu mais importante trabalho, "The Portuguese Seaborn Empire 1415-1825", onde indirectamente aponta para o "atraso" da descolonização lusa, também só é publicado em português depois de 1974.
"Charles nunca foi um homem político", afirma Cummins. "A política sempre o divertiu mais do que o interessou. É um liberal, que viveu muitos anos no estrangeiro e que odeia o snobismo, nada mais."
De repente, a meio da conversa, ou talvez para a desviar com elegância, Boxer recorda-se de algo que deve mostrar. Levanta-se a custo, vai até à secretária de trabalho onde há muitos meses já não se senta. Lá em cima, as fotografias a preto e branco de duas belas mulheres. Boxer tem duas filhas de Emily, uma é actriz de teatro, em Londres, vai a Little Gaddesden regularmente; a outra vive em Nova Iorque, telefona-lhe todos os domingos. Mas o apelido Boxer morrerá com ele.
Cá em baixo, no meio de correspondência que continua a chegar-lhe de todo o mundo, retira um caco de porcelana chinesa. Depois, ostenta uma monografia, escrita por ele em 1926, "Relação da perda da nau `Madre de Deus' no porto de Nagasáqui em Janeiro de 1610". E entusiasma-se por momentos: "Quando escrevi isto, não havia os métodos actuais de arqueologia submarina. Estão a trabalhar nos destroços, mantêm-me informado, este fundo de um pote foi de lá retirado." E remata, meio divertido: "Vamos ver se os dados que escrevi condizem com o que acharem."
Uma biblioteca única
Para além de se corresponder, desde há mais de 50 anos, com académicos e investigadores de todo o mundo, que lhe mandam as suas obras, à espera de um comentário, Boxer desde sempre abriu a sua casa a colegas e alunos, ingleses e estrangeiros, que ali encontraram uma das mais vastas e valiosas colecções de livros e manuscritos sobre a época dos Descobrimentos alguma vez reunida em mãos de particulares. O conhecido Boxer Codex, de 1588, das Filipinas, é talvez a obra mais valiosa do espólio, onde estão também relatos manuscritos de laicos e religiosos portugueses, dos séculos XVI e XVII, únicos no mundo.
Quando os japoneses invadiram Hong Kong, na II Guerra Mundial, Boxer estava lá, como agente dos serviços secretos britânicos, e já então a sua biblioteca era considerada tão valiosa que estava na lista de bens a confiscar. O seu destino foi a Biblioteca de Tóquio, mas Boxer veio a receber tudo de novo depois do conflito.
Hoje, muitas das prateleiras estão vazias. A Lilly Library, da Universidade de Bloomington, Indiana, comprou a totalidade da chamada "biblioteca boxeriana" em 1964, com a condição de ele ter o seu usufruto vitalício. O que ali se vê é o que ele foi juntando depois dessa data. "Não esperavam que eu vivesse tanto tempo e, a dada altura, desesperaram", afirma sem sinal de emoção este bibliófilo, bem conhecido de alfarrabistas e antiquários de Xangai, Hong Kong, Amesterdão, Roma, Paris ou Lisboa. "Além da questão de não poder ler, a separação física em relação aos livros terá sido o que mais lhe custou", diz um atento professor Cummins, quando Boxer se afasta para uma sessão de fotografias no exterior. "Está tudo a acontecer-lhe ao mesmo tempo, a morte da mulher, a cegueira, a partida dos livros. Você veio assistir à morte lenta de um grande homem."
Cá fora, na alameda da propriedade, Boxer vai caminhando com dificuldade, amparado numa bengala. "Não é nada que ele não faça todos os dias. Não há problema. Tirem as fotografias que quiserem", diz um Cummins ao mesmo tempo emocionado e surpreendentemente frio. "Estou a trabalhar na presença jesuíta no Japão no tempo da expansão europeia. Passo a vida aqui ou na Biblioteca Britânica", diz este académico, uma autoridade na presença dominicana e jesuíta na Ásia, enquanto olha para a silhueta de Boxer a desaparecer no horizonte. "Dantes, ele era a minha Biblioteca Britânica. Agora, tem dias."
Uma cátedra no King's College
Mas, além de Cummins, já poucos procuram a casa do historiador, embora qualquer táxi da região saiba onde vive "the old major" ou "the old gentleman". Longe vão os tempos em que a vivenda de Little Gaddesden era o centro de formidáveis serões, onde à mesa de jantar se podiam juntar um historiador jesuíta e um membro de uma nova seita japonesa, um bibliófilo peruano e um comandante naval, um novelista holandês e um estudante filipino. E falava-se de tudo, desde livros, manuscritos, moedas antigas, história, até à ultima descoberta de cartografia antiga.
Sem nunca ter cultivado o hábito de escrever um diário ou apontamentos pessoais, a recordação de Boxer fica nos livros que escreveu e nas pessoas que com ele conviveram. "Abriu, aos olhos dos alunos que passaram por ele, tempos e locais distantes como quem abre um baú de especiarias", cita Cummins. A frase é do abaixo-assinado de 32 catedráticos de História, quando da sua despedida de Yale, de onde guarda o título de "Professor emeritus". E a sua memória ficará também perpetuada na Cátedra Charles Ralph Boxer de Estudos Portugueses que este ano foi inaugurada no King's College.
De volta a casa, Cummins encomenda um chá ao empregado que todos os dias lá vai tratar de Boxer. Fala-se de Portugal, de Macau, da Expo-98, que Boxer decerto gostaria de visitar, da biografia que Cummins e outro discípulo do historiador, o norte-americano Daryl Alden (ver PÚBLICO de 19/05/97), estão a preparar sobre o mestre e amigo.
Ausente desta realidade, o mais produtivo e importante historiador estrangeiro que se dedicou aos Descobrimentos, inspirador de toda uma nova escola de orientalistas sobre a Ásia portuguesa, está mais preocupado em trincar uma bolacha e em não entornar o chá de uma chávena hesitante e trémula.
Professor Boxer, qual foi o livro que tem pena de não ter escrito? O silêncio torna-se desta vez incomodativo. Repete-se a pergunta e nada acontece. Cummins salva a situação e responde agora pelo amigo. "Sem dúvida que foi uma biografia sobre António Vieira. Ele ficou fascinado pela personagem, leu tudo o que havia sobre ele, estava a preparar-se para iniciar um trabalho que seria decerto definitivo quando um aluno disse que o iria fazer, para um mestrado. Charles anuiu de imediato, abriu-lhe a sua biblioteca, mas o trabalho nunca chegou a fazer-se e a ocasião perdeu-se." Mas Boxer nunca se lamentou. Como também não o faz hoje, face à decadência física.
"Raramente deixa transparecer as emoções e nunca se queixa", diz Cummins, baixando um pouco a voz. "Ele não acredita na eficácia do queixume. É um estóico."
"Este homem é perigoso"
Terceiro titular da cátedra Camões no King's College de Londres, o historiador Charles Boxer, doutor "honoris causa" pelas mais prestigiadas universidades do mundo e o mais produtivo e importante historiador estrangeiro que escreveu sobre os Descobrimentos portugueses, não tem qualquer título académico e começou a sua carreira de investigador apenas aos 43 anos, quando deixou o Exército com o posto de major.
Charles Ralph Boxer nasceu a 8 de Março de 1904, na ilha de Wight, Sul de Inglaterra. Foi educado em Wellington e Sandhurst e entrou em 1923 para o regimento de Lincolnshire com o posto de tenente. Durante os 24 anos seguintes, serviu nesse regimento, primeiro na Irlanda do Norte, depois, de 1930 a 1933, como oficial intérprete no Japão. Desde 1936 que estava estacionado em Hong Kong, como membro dos serviços secretos britânicos. Em Dezembro de 1941, depois de ser ferido em acção, torna-se prisioneiro de guerra dos japoneses, seus velhos conhecidos e que, desde que o conflito tinha começado, o tinham eleito como figura de destaque, a abater. Cartazes com a fotografia de Boxer, com a legenda em japonês "este homem é perigoso", circulavam nessa altura pela colónia britânica. Condenado a 35 anos de prisão, passa os três anos seguintes, até à derrota japonesa, em regime de "solitária", em Guangzhou (Cantão).
Em Fevereiro de 1946, quando a II Guerra Mundial acabou, regressou ao Japão, como parte da delegação britânica na comissão aliada. Durante esse período na Ásia, por entre a vida de soldado, Boxer publicou uma série de trabalhos sobre a história do Extremo Oriente, passando a ser desde então uma figura conhecida e respeitada na comunidade académica.
"Não é habitual para um soldado profissional, com 43 anos e sem títulos académicos, entrar na vida universitária como professor de Português, depois professor de História do Extremo Oriente e mais tarde professor de História da Expansão Europeia no Ultramar", nota George West, no livro publicado em 1984, por ocasião do 80º aniversário de Boxer.
Mas foi isso mesmo que aconteceu. Em 1947, Boxer demite-se do Exército quando lhe é proposta a cátedra de Camões, no King's College, da Universidade de Londres, como figura que sucedia assim ao professor Edgar Prestage (1869-1951), que era o segundo titular do cargo, depois do seu fundador, George Young. Boxer manteve esse posto até se demitir, em 1967, com um "interregno" de dois anos (1951-53) quando se tornou no primeiro professor de História do Extremo Oriente na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
Especialmente vocacionado para línguas, desde os anos 30 que Boxer dominava o japonês. Seguem-se o holandês e o português e, mais tarde, francês, espanhol, alemão e italiano. Apenas uma "falha", que ele próprio admite. Não sabe chinês, embora tenha viajado ao longo dos anos por todas as províncias do Império do Meio. Essa falta do domínio da língua chinesa é a razão que apresenta para deixar, contra a vontade da Universidade de Londres, a cadeira de História do Extremo Oriente. "É como se um professor de História da Europa não soubesse francês", disse na altura.
Em 1967, depois de se reformar, começou a ensinar na Universidade de Indiana, em Bloomington e, ao mesmo tempo, foi contratado como consultor da Lilly Library, a biblioteca daquela instituição. Em 1969, passa a ensinar na Universidade de Yale, regendo a cadeira de História da Expansão da Europa no Ultramar, cargo que ocupa até 1972. Desde então, abandona a actividade docente, continuando, no entanto, a dar conferências por todo o mundo, a pesquisar e a escrever livros.
Os Descobrimentos e a expansão portuguesa constituem, como é natural, "uma das áreas de maior interesse de historiadores de várias nacionalidades" e o interesse pelos Descobrimentos e pelos impérios ultramarinos "é quase uma obsessão da historiografia europeia e americana", afirma Luís Reis Torgal, no capítulo "A História de Portugal vista de fora", no volume "História da História de Portugal séc. XIX e XX" recentemente editado. "O mais produtivo e importante historiador estrangeiro que escreveu sobre os Descobrimentos, a expansão, a colonização e o império português" é, segundo ele, Charles Ralph Boxer. Membro das Academias portuguesas das Ciências e de História, condecorado com a Ordem de Santiago da Espada e com a Grande Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, pelos seus estudos em história portuguesa ultramarina, Boxer teve como assistentes no King's College, primeiro Ruben Andersen Leitão e, depois, Luís Rebelo.
Uma bibliografia de Charles Boxer, editada juntamente com o livro de homenagem pelos seus 80 anos, regista 315 títulos, produzidos entre 1926 e 1984 e alguns dos que respeitam a Portugal e ao seu império encontram-se actualmente disponíveis no mercado português: "Ásia Sínica e Japónica - Obra Póstuma do Frade Arrábido José de Jesus Maria"; "Estudos para a História de Macau Séculos XVI e XVII"; "O Grande Navio de Amacao"; "A Igreja e Expansão Ibérica"; "O Império Marítimo Português"; "A Índia Portuguesa em Meados do Século XVII"; "Macau na Época da Restauração"; "A Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica"; "Relações Raciais no Império Colonial Português". A Fundação Oriente está a editar (vai no quarto volume), as Obras Completas de Charles Boxer.
Fazedor de santos
Charles Boxer é o decano dos historiadores estrangeiros que se dedicaram ao estudo da expansão colonial portuguesa. Mas a sua autoridade nessa matéria, com obras consideradas definitivas, especialmente no que respeita à Ásia, não exclui o facto de ele ter publicado sobre outros temas, com tanto ou maior reconhecimento por parte da comunidade académica. Agnóstico assumido, trata a Companhia de Jesus como "os meus jesuítas" e uma obra sua foi crucial, séculos depois dos factos relatados, num processo de beatificação.
A actividade espanhola ou holandesa na época da expansão europeia, não apenas na Ásia, mas também em África ou na América Latina, ou os seus estudos pioneiros sobre os jesuítas e outras ordens religiosas nessas áreas do mundo mereceram-lhe o elogio generalizado e ainda hoje são tomados como base para novas investigações.
"Jan Compagnie in Japan 1600-1817" (1936); "Fidalgos in the Far East 1550-1770" (1948); "Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola" (1952); "South China in the XVI Century" (1953); "The Dutch in Brazil 1624-1654" (1957); "The Great Ship from Amacon" (1959); "Fort Jesus and the Portuguese in Mombasa" (1960); "The Golden Age of Brazil 1695-1750" (1962); "The Dutch Seaborn Empire 1600-1800" (1965); "Portuguese Society in the Tropics" (1966); "Mary and Misogyny" (1975); "From Lisbon to Goa 1500-1750 Studies in Portuguese Maritime Expansion" (1984); "Seventeenth-Century Macau" (1984); "Portuguese Merchants and Missionaries in Feudal Japan 1543-1640" (1986); "Dutch Merchants and Mariners in Asia 1602-1795" (1988), são obras que lusitanistas, iberistas, latinistas, africanistas ou orientalistas continuam a achar imprescindíveis como ferramenta de trabalho.
Para além do seu "The Portuguese Seaborn Empire 1415-1825", de 1969, talvez o mais conhecido em Portugal, e cujos capítulos de abertura são o melhor resumo alguma vez publicado em inglês sobre esse período da história lusa, "The Christian Century in Japan", de 1951, tornou-o mundialmente conhecido, sendo considerado por muitos investigadores o seu melhor livro.
O actual superior dos jesuítas, o holandês Peter-Hans Kolvenbach, afirma que a Sociedade de Jesus "está em dívida para com ele", pelas pesquisas que desenvolveu sobre a ordem em muitas partes do mundo, especialmente no Oriente e nas Américas. "Não é apenas como académico que ele é apreciado. Aqui em Roma, os membros do nosso Instituto Histórico foram cultivando ao longo de muitos anos a sua amizade e cooperação", afirma Kolvenbach.
Em 1969, Boxer é feito cavaleiro papal, ao ser-lhe concedida a Ordem de São Gregório, "o Grande", pelos seus estudos em missiologia.
Mas a coroa de glória de Boxer, um agnóstico declarado (na "solitária", em Guangzhou, prisioneiro de guerra dos japoneses, dão-lhe como único livro a Bíblia, que recusa, pedindo Shakespeare), é ser respeitado não apenas pelos "seus jesuítas", como ainda hoje carinhosamente trata os membros da Companhia, como pelo próprio Vaticano. Ao escrever "The Dominican Mission in Japan 1620-22", de 1963, tornou-se uma testemunha-chave no processo de canonização do dominicano frei Domingo de Erquicida e dos seus 16 companheiros (1633-37). A Positio super Introductione Causae (Vaticano, 1979), documento oficial da Santa Sé, cita o trabalho de Boxer, qualificando-o como "de extraordinário valor, devido à sua documentação extremamente rica em fontes primárias japonesas, holandesas, espanholas, portuguesas e inglesas". E, a certa altura, afirma: "Dada a sua autoridade, seguimos a sua opinião."
Um século de aventuras
Era uma mulher lindíssima, uma personalidade forte e independente, fumadora de ópio recuperada e com especial tendência para se apaixonar por chefes de família. "Não sei por que é que sempre me deixei atrair por homens casados", dizia. Passou a vida em locais remotos e exóticos da África e do Extremo Oriente, fugindo da Depressão nos Estados Unidos, sua terra natal, e "não da pobreza, mas da vergonha dela". Ela e Boxer tiveram a primeira de duas filhas "por encomenda". Emily "Mickey" Hahn, nasceu em Saint Louis, Missouri, a 14 de Janeiro de 1905 e morreu em Nova Iorque a 18 de Fevereiro de 1997.
Educada numa família que acreditava na força do individualismo e do carácter (a mãe era sufragista e o pai vendedor), Hahn tornou-se na primeira mulher a licenciar-se em Engenharia de Minas na Universidade de Winsconsin. Enquanto percorria os Estados Unidos de carro, acompanhada de uma irmã, ia aprofundando os seus estudos de Mineralogia, na Universidade de Columbia, e de Antropologia, em Oxford.
Chegada a Nova Iorque, no final dos anos 20, publica o seu primeiro e premonitório livro, "Seductio ad Absurdum: The Principles and Practices of Sedution".
As suas cartas ao cunhado, contando as aventuras pelos Estados Unidos, começam a ser publicadas em 1929 no "New Yorker". Inicia-se então uma colaboração ininterrupta de quase 70 anos com uma das mais prestigiadas revistas do mundo (o último artigo apareceu no Natal de 1996). É nessa altura que experimenta também escrever para filmes, em Hollywood.
Pensando já numa carreira exclusiva como escritora e com o dinheiro ganho com o primeiro livro, parte para África, vivendo desde 1930 no Congo Belga, com os pigmeus da floresta de Itari.
Companheira de um antropólogo, passa o tempo a ler-lhe a limitada biblioteca, circunscrita às explorações africanas. Até que, um dia, a Enciclopédia Britânica lhe chega, por canoa, em dois volumosos embrulhos. E mergulha nela durante meses e meses. "Sempre preferi ler a trabalhar", confessa. Hahn regressou a África nos anos 50 e 60 e as suas experiências nesse continente estão contadas em vários livros de reportagem, viagem ou ficção.
Em 1935, visita a China no que seria em princípio uma estadia curta. Acabou por ficar nove anos no Extremo Oriente. Vivendo na Xangai excêntrica e turbulenta dessa época, com a China mergulhada na guerra civil entre nacionalistas e comunistas e, ao mesmo tempo, ocupado pelos japoneses, Hahn tornou-se amante de um intelectual local, Zau Sinmay, e conhece líderes da futura República Popular, como Mao Tsé Tung ou Chou En-Lai. Durante esses tempos na "Prostituta do Oriente", como Xangai era conhecida, aprende a fumar ópio e torna-se, em dois anos, viciada nessa droga. Um tratamento por hipnotismo cura-a da dependência.
Mais uma vez, as suas experiências chinesas são relatadas em várias obras de reportagem e ficção.
O encontro com Boxer
Quando Xangai cai em poder dos japoneses, Emily Hahn e muitos outros estrangeiros fogem para Hong Kong. É lá que ela encontra James Ralph Boxer, um muito casado major dos serviços secretos britânicos.
Uma vez, num restaurante, Emily dizia, alto e bom som, numa roda de amigos, que não podia ter filhos. Boxer, ripostou-lhe: "Claro que podes. Aposto o que quiseres." Mais tarde, num táxi, ele voltou à carga: "Queres mesmo ter um filho? Se sim, vamos ter um. Tomarei conta dele. Pode ser o meu herdeiro. Para fazer as coisas como deve ser, se conseguir o divórcio, e se tudo resultar, até podemos vir a casar. Só se ambos o quisermos, claro, e depois de muito tempo de ponderação".
Em 1940, e sem segredos para a expatriada sociedade britânica na colónia, Emily dá à luz Carola. Boxer foi entretanto capturado pelos japoneses, depois de ferido no ataque nipónico a Hong Kong. Hahn visitou-o no campo de concentração, até ela e a filha serem repatriadas para os Estados Unidos, em 1943. Quando Boxer foi libertado, casaram, e foram viver em 1946 para Inglaterra. Classificando-se então como "uma má dona de casa", às preocupações materiais de Boxer responde: "Se vamos viver com pouco dinheiro, então que seja gastando-o apenas em livros."
Embora Boxer tenha vivido desde então quase sempre em Inglaterra, Hahn escolheu passar grandes temporadas nos Estados Unidos, fugindo aos impostos.
Emily Hahn deixa uma vasta colecção de obras, mais de 60 títulos, versando biografias de personalidades tão diversas como Maria, Rainha da Escócia, Chiang Kaishek, as irmãs Soong (casadas com Sun Yatsen e Chiang Kai-Shek) ou Rafles, o fundador de Singapura, bem como volumes sobre animais, diamantes, ciências naturais e de viagem, além de novelas e livros para crianças.
A 29 de Abril de 2000, fazíamos o obituário do investigador
Morreu Charles Boxer, "abridor de baús"
Fernando Correia de Oliveira
Morreu Charles Boxer, doutor "honoris causa" pelas mais prestigiadas universidades do mundo e o mais produtivo e importante historiador estrangeiro que escreveu sobre os Descobrimentos portugueses. Não tinha qualquer título académico e começou a sua carreira de investigador apenas aos 43 anos, depois de deixar o exército com o posto de major.
Charles Boxer morreu quinta-feira em Londres, aos 96 anos, soube o PÚBLICO junto de familiares e amigos do maior historiador estrangeiro do período português da expansão. Cego, já com grandes dificuldades de locomoção, Boxer viveu os últimos anos na sua vivenda de Little Gaddesden, no Hertfordshire, em pleno coração do "countryside" inglês. O seu estado de saúde agravara-se nas últimas semanas, tendo levado os amigos a decidirem o seu internamento numa instituição londrina, onde viria a falecer.
Nascido a 8 de Março de 1904, na ilha de Wight, Sul da Inglaterra, Charles Ralph Boxer foi educado em Wellington e Sandhurst e entrou em 1923 para o regimento de Lincolnshire com o posto de tenente. Durante os 24 anos seguintes, serviu nesse regimento, primeiro na Irlanda do Norte, depois, de 1930 a 1933, como oficial intérprete no Japão. A partir de 1936, fica estacionado em Hong Kong, como membro dos serviços secretos britânicos. Os japoneses invadem a China e a II Guerra Mundial está à porta.
Em Dezembro de 1941, depois de ser ferido em acção, Boxer é feito prisioneiro de guerra pelos japoneses, que, desde o início do conflito o tinham eleito figura a abater. Condenado a 35 anos de prisão, passa os três anos seguintes, até à derrota japonesa, em regime de "solitária", em Guangzhou (Cantão). Os japoneses, recorda monsenhor Manuel Teixeira, seu amigo desde 1937, "fuzilaram todos os oficiais, excepto Boxer; a ele, torturaram-lhe a mão esquerda, que ficou inutilizada para toda a vida, mas deixaram-lhe a direita para poder continuar a escrever a História, o que ele fez".Em Fevereiro de 1946, quando a II Guerra Mundial acabou, Boxer, então já se fixara em Inglaterra, regressou ao Japão, integrando a delegação britânica na comissão aliada.
Durante o período que passará na Ásia, publica uma série de trabalhos sobre a história do Extremo Oriente, passando a ser, desde então, uma figura conhecida e respeitada na comunidade académica."Não é habitual para um soldado profissional, com 43 anos e sem títulos académicos, entrar na vida universitária como professor de Português, depois professor de História do Extremo Oriente e, mais tarde, professor de História da Expansão Europeia no Ultramar", notava S. George West no livro publicado por ocasião do 80º aniversário de Boxer. Mas foi isso mesmo que aconteceu.
Em 1947, Boxer demite-se do exército para aceitar a proposta que lhe é feita para reger a cátedra de Camões, no King's College de Londres, lugar que ocupou até se reformar, em 1967.Muito dotado para línguas, desde os anos 30 que Boxer dominava o japonês. Seguiram-se o holandês e o português e, mais tarde, o francês, o espanhol, o alemão e o italiano. Em 1967, começou a ensinar na Universidade de Indiana, em Bloomington, ao mesmo tempo que exercia o cargo de consultor da Lilly Library, a biblioteca daquela instituição. Em 1969, passa a reger a cadeira de História da Expansão da Europa no Ultramar na Universidade de Yale, cargo que ocupa até 1972, altura em que deixa a actividade docente, continuando, no entanto, a dar conferências, a investigar e a escrever.
Luís Reis Torgal, na "História da História de Portugal, Séculos XIX e XX", afirma que Boxer é "o mais produtivo e importante historiador estrangeiro que escreveu sobre os Descobrimentos, a expansão, a colonização e o império português". Membro das academias portuguesas das Ciências e de História, condecorado com a Ordem de Santiago da Espada e com a Grande Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique, pelos seus estudos de história portuguesa ultramarina, Boxer deixa uma vasta bibliografia: mais de 300 títulos, produzidos entre 1926 e 1984.
"Relações Raciais no Império Colonial Português - 1415-1825", escrito em 1963, provocou acesa polémica com Armando Cortesão, e o livro só foi publicado em Portugal em 1977. Boxer citava, logo no início, uma frase proferida por Salazar numa entrevista à revista norte-americana "Life": "Estes contactos jamais envolveram a menor ideia de superioridade racial ou discriminação... Pode-se assim dizer que a característica principal da África portuguesa - apesar dos esforços empregados em muitos sectores para atacá-la com palavras e acções - é a primazia que sempre demos e continuaremos a dar à intensificação do valor e da dignidade do homem, sem distinção de cor ou credo, à luz de princípios da civilização que nós levamos às populações que em todos os sentidos estavam aquém de nós". Boxer, no seu livro, desmonta, com a independência de historiador descomprometido, apoiado em documentos coevos, a atitude racial lusa, que não diferiu assim tanto da dos outros impérios coloniais.
"O meu erro foi citar Salazar, que ficou furioso e usou o Armando Cortesão para me atacar", dizia-nos há três anos Boxer, que sempre fugiu da polémica política. Mas a sua obra, até então usada pelo regime como parte da glorificação das Descobertas, foi proscrita e o seu mais importante trabalho, "The Portuguese Seaborn Empire, 1415-1825", onde indirectamente aponta para o "atraso" da descolonização lusa, também só é publicado em português depois de 1974.
Antes, porém, "The Christian Century in Japan", de 1951, tornara-o mundialmente conhecido, com muitos investigadores a considerarem-no o seu melhor livro. O actual superior dos jesuítas, o holandês Peter-Hans Kolvenbach, afirma que a Companhia de Jesus "está em dívida com ele", pelas pesquisas que desenvolveu sobre a ordem, especialmente no Oriente e nas Américas. "Não é apenas como académico que ele é apreciado", afirma Kolvenbach. "Em Roma, os membros do nosso Instituto Histórico foram cultivando, ao longo de muitos anos, a sua amizade e cooperação."
Em 1969, o historiador foi agraciado com a Ordem de São Gregório, o Grande, pelos seus estudos em missiologia. Mas a coroa de glória de Boxer, um declarado agnóstico (na "solitária", em Guangzhou, dão-lhe como único livro a Bíblia, que recusa, pedindo Shakespeare), era não ser apenas respeitado pelos "seus jesuítas", como carinhosamente tratava os membros da Companhia de Jesus, mas pelo próprio Vaticano. Ao escrever "The Dominican Mission in Japan, 1620-22", de 1963, tornou-se uma testemunha-chave no processo de canonização do frade dominicano Domingo de Erquicida e dos seus 16 companheiros (1633-37). A "Positio super Introductione Causae" (Vaticano, 1979), documento oficial da Santa Sé, cita o seu trabalho como sendo de "extraordinário valor, devido à extremamente rica documentação em fontes primárias japonesas, holandesas, espanholas, portuguesas e inglesas". E, a certa altura, comenta: "Dada a sua autoridade, seguimos a sua opinião."
É ainda de monsenhor Manuel Teixeira que citamos: "Um dia perguntei-lhe qual era a sua religião. Ele respondeu-me: 'Do pescoço para cima sou episcopaliano, mas do pescoço para baixo sou mórmon!'"Além de se corresponder durante mais de 50 anos com académicos e investigadores de todo o mundo, que lhe mandam as suas obras, à espera de um comentário, Boxer desde sempre abriu a sua casa a colegas e alunos, ingleses e estrangeiros, que ali encontraram uma das mais vastas e valiosas colecções de livros e manuscritos sobre a época dos Descobrimentos alguma vez reunida em mãos de particulares. A Lilly Library comprou a totalidade da chamada "biblioteca boxeriana" em 1964.
Sem nunca ter cultivado o hábito de escrever um diário ou apontamentos pessoais, a sua memória ficará perpetuada na cátedra Charles Ralph Boxer de Estudos Portugueses, inaugurada há três anos no King's College. E nos livros que escreveu, ou nas pessoas que com ele conviveram. Na síntese feliz feita pela comissão de honra de historiadores seus pares quando do seu 80º aniversário, abriu, aos olhos dos alunos e investigadores que com ele contactaram, tempos e locais distantes, como quem abre um baú de especiarias.
E, a 17 de Março de 2001, saia um artigo nosso sobre a biografia do historiador
Charles Boxer, samurai acidental
Fernando Correia de Oliveira
Foi o maior historiador estrangeiro da Expansão portuguesa. Charles Boxer, soldado, viajante, professor, bibliófilo, é uma figura fascinante. A Fundação Oriente patrocina a primeira biografia que lhe é dedicada.
Esta é uma história de dedicação e amizade. E de muita admiração. O académico Dauril Alden, da Universidade de Washington, liderou o esforço de pesquisa e de escrita. Mas os amigos James S. Cummins e Michael Cooper ajudaram muito. Os três nutrem uma relação muito especial com a figura de Charles Ralph Boxer, o maior historiador estrangeiro da Expansão portuguesa. O projecto da biografia de Boxer, que morreu a 27 de Abril de 2000, tinha nascido três anos antes.
O trabalho está agora acabado, a edição, só em língua inglesa, patrocinada pela Fundação Oriente, sairá em Abril (An Uncommon Life: Soldier, Historian, Teacher, Collector, Traveller). Haverá um lançamento oficial em Londres, no King's College, onde Boxer foi durante muitos anos responsável pela cátedra de Estudos Portugueses.
Charles Ralph Boxer nasceu na ilha de Wight em 1904. Do lado paterno, era descendente de uma família com grandes tradições militares, que servira em postos de comando em todas as guerras disputadas pela Grã-Bretanha desde a Revolução Francesa. O pai morreu em França, durante a I Guerra Mundial. Ele e o irmão estavam, naturalmente, destinados à carreira militar, frequentando as academias de Wellington e Sandhurst.Oficial ao serviço da Coroa na Irlanda do Norte, a ida para o Japão, em 1930, como oficial intérprete, marca para sempre a sua vida. Partilha a estrita disciplina dos seus colegas soldados japoneses, inicia-se na filosofia zen, pratica artes marciais, como o kendo. Estacionado a partir de 1936 em Hong Kong, viaja pela região, investigando fontes directas, comprando velhos livros, coleccionando moedas e outras antiguidades. Vai a Macau. Com grande facilidade para a aprendizagem das línguas, acrescenta ao japonês fluente, o português, o holandês, o espanhol, o alemão, o italiano.
A II Guerra Mundial, dizem hoje muitos especialistas, começou em meados da década de 30, quando os japoneses invadiram a China. Boxer está nos serviços secretos britânicos em Hong Kong quando isso acontece. E quando os japoneses invadem a colónia, em Dezembro de 1941, é gravemente ferido em combate.
A biografia dirigida por Dauril Alden é a primeira do género, apesar da notoriedade da figura de Boxer, que nunca cultivou o hábito de escrever um diário ou sequer apontamentos pessoais. Mas o trabalho da equipa Alden/Cummins/Cooper é extraordinário, pois recolhe o essencial da vasta epistologia (Boxer correspondeu-se até quase à sua morte com académicos de todo o mundo), recolhe depoimentos dos que ainda estão vivos e passaram pela aventurosa e rica vida do historiador, recolhe fontes até agora inéditas, incluindo colaborações dispersas do biografado, num levantamento exaustivo."Talvez dentro de algum tempo venhamos a ver que Boxer foi o historiador inglês que realmente teve importância na segunda metade do séc. XX", dizia há dias no "The Guardian" o jornalista Hywel Williams.
Mas a biografia sai numa altura em que esse mesmo artigo do jornal londrino lança suspeitas sobre a honra de Boxer e o seu comportamento quando foi feito prisioneiro pelos japoneses (ver caixa). Com uma vida social muito activa e rodeada de algum escândalo (casou duas vezes, a última com a norte-americana Mickey Hahn, uma figura em si lendária, pelo seu feminismo, pelas atitudes ousadas, e de quem teve duas filhas).
Boxer foi amigo de Monsenhor Manuel Teixeira, uma das figuras incontornáveis da história de Macau. "Um dia, - recorda o padre - perguntei-lhe qual era a sua religião. Ele respondeu-me: 'Do pescoço para cima sou episcopaliano, mas do pescoço para baixo sou mórmon!'"Boxer deixou a carreira militar logo após a II Guerra Mundial. "Não é habitual para um soldado profissional, com 43 anos e sem títulos académicos, entrar na vida universitária, como professor de Português, depois como Professor de História do Extremo Oriente e, mais tarde, professor de História da Expansão Europeia no Ultramar", notava S. George West no livro publicado por ocasião do 80º aniversário de Boxer, ao recordar a decisão do historiador em aceitar o convite para reger a cátedra Camões, no King's College, de Londres, que ocupou de 1947 a 1967, quando se reformou e passou a integrar o corpo docente de Yale.
As relações de Boxer, que nunca se considerou um político, com o regime salazarista foram de cordialidade até 1963. Mas, quando se publica, em Inglaterra, e apenas em língua inglesa, o seu "Relações Raciais no Império Colonial Português - 1415-1825", estala uma grossa polémica, com o seu amigo de décadas e antigo refugiado Armando Cortesão (1891-1977), irmão mais velho do também historiador Jaime Cortesão, a ser o porta-estandarte das posições mais nacionalistas e anti-Boxer.
O historiador britânico apenas se limitara a dizer na obra que o não racismo na história do colonialismo português não passava de um mito. E dava profusos exemplos de maus tratos, perseguições, nos séculos de administração lusa de territórios em África, América ou Ásia. Mas talvez o principal ponto de irritação do regime tenha sido o facto de Salazar ter dado, pouco antes, na "Life" norte-americana, uma das suas raras entrevistas. O anti-colonialismo nas Nações Unidas ia apertando com Lisboa, a Índia já tinha tomado pela força Goa, Damão e Dio, a guerra de Angola tinha começado. E Salazar dizia na revista que as colónias eram apenas "províncias" do todo português, que não estavam preparadas para a independência, dado que os seus povos eram bárbaros e precisavam de ainda mais algum tempo de "acção civilizadora". Acrescentava que, em tempo algum, no Império português, se tinha perseguido em ordem de raça ou credo.
Boxer citava o ditador, para o contradizer. "Estou convencido de que Armando Cortesão foi apenas o porta-voz de Salazar", dizia-nos Boxer, pouco antes de morrer, na sua casa a norte de Londres. Na polémica que alimentou a madornice lusa dos anos 60, ao lado de Cortesão, que voltara do exílio em 1952 e se acomodara ao regime, alinharam nomes como Silva Rego, Virgínia Rau ou o brasileiro Gilberto Freyre.
Do lado de Boxer, e publicamente, o que exigia muita coragem, manifestaram-se então Albertino Monteiro Crespo, António Álvaro Dória, o padre capuchinho Leite de Faria, Avelino Teixeira da Mota, o macaense Jack Braga, Joel Serrão.
De figura amada, por nos seus livros descrever a gesta dos portugueses nas sete partidas, a "persona non grata", por atacar o mito da inter-racionalidade do Império, Boxer deixou de visitar tão assiduamente Portugal, os seus livros passaram a ser proibidos, as "Relações..." só foram publicadas em português depois de 25 de Abril de 1974.
Incessante na leitura comentada de livros, dizendo muitas vezes que as obras de colegas eram melhores do que as dele, Boxer irradiava simpatia, era extremamente respeitado, mesmo no Vaticano ou junto de ordens religiosas como os Jesuítas, que viam nele uma autoridade em assuntos orientais. Isto apesar de, quando na "solitária", ter recusado a Bíblia que os japoneses lhe colocavam à disposição, preferindo Shakespeare.
Quando deixou de escrever, em 1984, Boxer era autor de mais de 350 livros e artigos. Uma obra que não ficaria completa sem esta biografia de alguém que viveu uma vida pouco comum.
Absolutamente fabuloso! Parabens pelo artigo e pela descrição de tão fascinante personagem. Abraço.
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