sexta-feira, 27 de julho de 2018

O Tempo, os relógios e o novel Arcebispo José Tolentino de Mendonça


(foto Livros Cotovia)

Amanhã, sábado, o sacerdote José Tolentino Mendonça será elevado à dignidade de Arcebispo de Suava, no Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa, pelo Cardeal Patriarca D. Manuel Clemente. O futuro Arcebispo ocupará o cargo de responsável máximo da Biblioteca e Arquivo Secreto do Vaticano.

Sobre o Tempo, alguns pensamentos de José Tolentino de Mendonça, que aqui temos publicado ao longo dos anos:

Trazemos um calendário na pele e na alma.

Somos feitos de tempo, amassados da argila dos dias, tecidos em estações, idades e horas.

Somos feitos de cronometrias, isto é, de medições de tempo, próximas e distantes, numéricas e incontáveis, visíveis e invisíveis. Urdidos nesse tear paciente e misterioso que é o tempo (e que são os tempos!), trazemos um calendário na pele e na alma. Falar do tempo é, portanto, falar também desta complexa aparição a nós próprios, referir a surpresa com que nos colhemos ao longo de uma vida, nomear o espanto de, tantas vezes, sermos uma completa interrogação para nós mesmos.

Quando eu me vejo, quem vejo? Quando eu me olho, é a mim mesmo que observo? Esta pessoa que eu tinha a certeza de conhecer muito bem, com uma estabilidade inquestionável – eu sou isto, eu sou aquilo – percebo-a final em mutação, pois cada um de nós é um fluxo, uma viagem, um projeto aberto, um amadurecer, uma epifania inacabada no tempo.

Escreve, por isso, Santo Agostinho nas Confissões: "Que é pois o tempo?Se ninguém me pergunta eu sei, mas se desejo explicar a quem o pergunta não o sei." [...]

Qualquer data nos coloca silenciosamente não apenas perante a questão do tempo, mas diante de uma mais primitiva interrogação: a do sentido do tempo. [...]

É uma herança do cristianismo medievo a oficialização da contagem actual do tempo. Os cristãos do período justiniano (séc. VI), convictos da singularidade histórica que Jesus representa, propõem que Ele seja tomado como marco cronológico para tudo o que o antecedeu e para o que se lhe segue. O Tempo deixa, assim, de ser uma categoria meramente contabilística e neutral (se é que alguma vez e em algum lado o foi!) e assume uma discreta conotação simbólica e teológica. [...]


Sobre o mesmo tema, na Revista Expresso, 15/06/13

De repente, damos por nós a lidar mal com o inacabado e o "em bruto" da vida, com a gestão e os seus tempos assimétricos, com os avanços e os recuos necessários à aprendizagem. Tratamos a vida com a mesma ansiedade que se abate sobre nós nos cinzentos corredores de espera, nas filas administrativas, nos engarrafamentos do trânsito. Tornámo-nos viciados em assuntos rapidamente fechados.

De repente, damos por nós a saber apenas medir o tempo pelo relógio e a pensar que não remos tempo para perder. O tempo do relógio é regulado por uma máquina. É neutral, isento e uniforme, corre inalterável, dirige-se sempre para diante, indiferente às ingerências do presente ou ao que fica para trás. O tempo do relógio é desempilhado e contínuo, capaz de afirmar, a qualquer preço, a sua progressividade. É um tempo sem vínculos, sem sentimentos que atrasam, sem raízes que matutam para além do tempo. O tempo do relógio não é exactamente um tempo humano. E, contudo, fizemos do seu triunfo uma espécie de interdito civilizacional. Eu diria que o exercício da paciência começa pela aceitação esperançosa da vida. Ela coloca-nos face a face com a vulnerabilidade, aquela própria e a dos outros. Provavelmente ainda nos sentimos distantes das nossas metas, não gostamos de tudo o que encontramos em nós e à nossa volta, percebemos que há um trabalho de transformação que deve prosseguir ou deve mesmo ser intensificado. Não se deve confundir paciência com indecisão, passividade, escassa coragem. Pelo contrário: é a audácia de não deixar-se instrumentalizar pela precipitação ou bloquear pelo temor, investindo ativamente o nosso tempo na gestão das expressões complexas e inesperadas da vida, mas fazendo-o com sabedoria, serenidade e atitudes construtiva. Gosto mito do modo como São Tomás de Aquino explica a paciência. Diz ele: a paciência é a capacidade de não desesperar.

O agricultor não escava desesperado a terra atrás a semente que ali deixou, mas aparta-se dela sabendo que há um tempo necessário de separação para que a semente, ao seu ritmo, possa florir. O pecador não abandona para sempre o mar só porque nesse dia não conseguiu apanhar peixe algum. Ele sabe que há só uma coisa a fazer: voltar no dia seguinte. A paciência é atenção à singularidade e à oportunidade de cada tempo, plenamente conscientes de que a existência se constrói com materiais muito diversos: peças de proveniência diversa, memórias heterogéneas, fragmentos disto e daquilo, caligrafias inequívocas, pegadas que prosseguem lado a lado mas visualmente desiguais, e por aí fora. A nossa unidade pessoal e a nossa comunhão com os outros só se realiza no encontro inesperado do diverso. Por uma via demorada de escuta, de disponibilidade, de afectivo reconhecimento, da negociação e, por fim, de encontro. A maior parte do tempo habitamos o inacabado. A paciência, se quisermos, é a arte de acolhê-lo e de partir dai para um trabalho incessante de ressignificação (que é, como sabemos, em grande medida, um trabalho de reconciliação).

O escritor italiano Giacomo Leopardi lembrou, que "a paciência é a mais heróica das virtudes, precisamente por não possuir aparentemente nada de heróico". E é também um traço de humor que vejo no facto do termo grego para paciência, makrothymia, descrever fundamentalmente um modo de respirar. A paciência é respiração longa, distendida e aberta. O contrario do nosso respirar ofegante e férreo. Talvez que tudo o que tenhamos a faz seja isso: respirar melhor. [...]

Ainda no Expresso:

Quando olhamos para um bocado de terra, apercebemo-nos de várias camadas geológicas e até somos capazes de dizer: esta levou mil anos a sedimentar, esta levou quinhentos, esta dez. Toda a realidade é lavrada pelo incomensurável efeito do tempo: seja a minúscula pedra ou a grandiosa montanha, tudo tem no tempo a sua chave indispensável. Somos trabalhados instante a instante pelos seus instrumentos. E por vezes o tempo passa por nós de forma tão delicada que nem damos por ele, e outras atormenta-nos, assedia-nos, convulsa-nos, com a sua voracidade. [...]

Na obra em italiano Liberiamo il tempo - Piccolo Manuale sull'arte di vivere:

Quantas vezes nos encontramos de acordo com lugares comuns como "precisaria de um dia de 48 horas". Duvido que seja exatamente isto que nos serve. A verdadeira sabedoria está em aceitar que o tempo não se pode estender. [...]

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