segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Meditações - Porque escutar o trânsito das horas?

DESESPERANÇA

Meia-noite bateu, volvendo ao nada
Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, oh campa mysteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei comtigo!

Qual tufão, que ao passar agita o pégo.
Meu placido existir turvou a sorte.
Halito impuro de pulmões ralados
Me diz que nelles se assentou a morte.

Em quanto mil e mil no largo mundo
Dormem em paz sorrindo, eu vélo e penso,
E julgo ouvir as preces por finados,
E ver a tumba e o fumegar do incenso.

Se dormito um momento, acórdo em sustos;
Pulos me dá o coração no peito,
E abraço e beijo de uma vida extincta
O ultimo socio, o doloroso leito.

De um abysmo insondado ás agras bordas
Insanavel doença me ha guiado,
E disse-me:--no fundo o esquecimento:
Desce; mas desce com andar pausado.

E eu lento vou descendo, e sondo as trévas:
Busco parar; parar um só instante!
Mas a cruel, travando-me da dextra,
Me faz cahir mais fundo, e grita:--ávante!

Porque escutar o transito das horas?
Alguma dellas trar-me-ha conforto?
Não! Esses golpes, que no bronze ferem,
São para mim como dobrar por morto.

Morto! morto!- me clama a consciencia:
Diz-m'o este respirar rouco e profundo.
Ai! porque fremes, coração de fogo,
Dentro de um seio corrompido e immundo?

Beber um ar diaphano e suave,
Que renovou da tarde o brando vento,
E converte-lo, no aspirar contínuo,
Em bafo apodrecido e peçonhento!

Estender para o amigo a mão mirrada,
E elle negar a mão ao pobre amigo;
Querer uni-lo ao seio descarnado,
E elle fugir, temendo o seu perigo!

E ver após um dia ainda cem dias,
Nús d'esperança, ferteis de amargura;
Soccorrer-me ao porvir, e acha-lo um ermo,
E só, bem lá no extremo, a sepultura!

Agora!... quando a vida me sorria:
Agora!... que meu estro se accendêra;
Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,
Como se enlaça pelo choupo a hera,

Deixar tudo, e partir, sósinho e mudo;
Varrer-me o nome escuro esquecimento:
Não ter um eccho de louvor, que affague
Do desgraçado o humilde monumento!

Oh tu, sêde de um nome glorioso,
Que tão fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste, e só me resta a pobre herança
De ver a luz do sol mais alguns dias.

Vestem-se os campos do verdor primeiro:
Já das aves canções no bosque ecchoam:
Não para mim, que só escuto attento
Funereos dobres que no templo soam!

Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo,
Irei tão cedo repousar na terra?!
Oh, meu Deus, oh meu Deus! um anno ao menos;
Um louro só... e meu sepulchro cerra!

É tão bom respirar, e a luz brilhante
Do sol oriental saudar no outeiro!
Ai, na manhan sauda-la posso ainda;
Mas será este inverno o derradeiro!

Quando de pomos o vergel for cheio;
Quando ondeiar o trigo na planura;
Quando pender com aureo fructo a vide,
Eu tambem penderei na sepultura.

Dos que me cercam no turbado aspecto,
Na voz que prende desusado enleio,
No pranto a furto, no fingido riso
Fatal sentença de morrer eu leio.

Vistes vós criminoso, que hão lançado
Seus juizes nos trances da agonia,
Em oratorio estreito, onde não entra
Suavissima luz do claro dia;

Diante a cruz, ao lado o sacerdote,
O cadafalso, o crime, o algoz na mente,
O povo tumultuando, o extremo arranco,
E céu, e inferno, e as maldicções da gente?

Se adormece, lá surge um pesadelo,
Com os martyrios da sua alma acorde;
Desperta logo, e á terra se arremessa,
E os punhos cerra, e delirante os morde.

Sobre as lageas do duro pavimento
De vergões e de sangue o rosto cobre.
Ergue-se e escuta com cabellos hirtos
Do sino ao longe o compassado dobre.

Sem esperança!...
Não! Do cadafalso
Sóbe as escadas o perdão ás vezes;
Porém a mim... não me dirão:--és salvo!
E o meu supplicio durará por mezes.

Dizer posso:--existi: que a dor conheço!
Do goso a taça só provei por horas:
E serei teu, calado cemiterio,
Que engenho, gloria, amor, tudo devoras.

Se o furacão rugiu, e o debil tronco
De arvore tenra espedaçou passando,
Quem se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal é o meu destino miserando!

Numen de sancto amor, mulher querida,
Anjo do céu, encanto da existencia,
Ora por mim a Deus, que ha-de escutar-te.
Por ti me salve a mão da Providencia.

Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge!
Um beijo ardente aos labios teus voára:
E neste beijo venenoso a morte
Talvez este infeliz só te entregára!

Se eu podesse viver... como teus dias
Cercaria de amor suave e puro!
Como te fôra placido o presente;
Quanto risonho o aspecto do futuro!

Porém, medonho espectro ante meus olhos,
Como sombra infernal perpetuo ondeia,
Bradando-me que vai partir-se o fio
Com que da minha vida se urde a teia.

Entregue á seducção em quanto eu durmo,
No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!
Quem velará por ti, pomba innocente?
Quem do perjurio poderá salvar-te?

Quando eu cerrar os olhos moribundos
Tu verterás por mim pranto saudoso;
Mas quem me diz que não virá o riso
Banhar teu rosto triste e lachrymoso?

Ai, o extincto só herda o esquecimento!
Um novo amor te agitará o peito:
E a dura lagea cubrirá meus ossos
Frios, despidos sobre terreo leito!...

Oh Deus, porque este calix de agonia
Até as bordas de amargor me encheste?
Se eu devia acabar na juventude,
Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste?

Virgem do meu amor, porque perde-la?
Porque entre nós a campa ha-de assentar-se?
Tua suprema paz com goso ou dores,
Do mortal, que em ti crê, póde turbar-se?

Não haver quem me salve! e vir um dia
Em que de minha o nome ainda lhe désse!
Então, Senhor, o umbral da eternidade,
Talvez sem um queixume, transposesse.

Mas, qual flor em botão pendida e murcha,
Sem de fragrancias perfumar a brisa,
Eu poeta, eu amante, ir esconder-me
Sob uma lousa desprezada e lisa!

Porque? Qual foi meu crime, oh Deus terrivel?
Em te adorar que fui, senão insano?...
O teu fatal poder hoje maldigo!
O que te chama pae, mente: és tyranno.

E se aos pés de teu throno os ais não chegam;
Se os gemidos da terra os ares somem;
Se a Providencia é crença van, mentida,
Porque geraste a intelligencia do homem?

Porque da virgem no sorrir poseste
Sancto presagio de suprema dita,
E apontaste ao poeta a immensidade
Na ancia de gloria que em sua alma habita?

A immensidade!... E que me importa herda-la,
Se na terra passei sem ser sentido?
Que val eterno vagueiar no espaço,
Se nosso nome se afundou no olvido?

Alexandre Herculano

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