quinta-feira, 15 de junho de 2017

Relógio de Torre em Portugal - Conferência de Fernando Correia de Oliveira na Nazaré


(foto Manuel Moura)

Ontem, no Palácio Real da Nazaré, e tendo por anfitrião a Confraria da Nossa Senhora da Nazaré, proferimos a conferência "Relojoaria de Torre em Portugal - em voo de pássaro". A intervenção foi feita no âmbito da inauguração da exposição "José Pereira Cardina - fabricante de relógios de torre, Nazaré", que está patente até 2 de Julho no Museu Etnográfico Dr. Joaquim Mando - Museu da Nazaré.


A parte introdutória da Conferência, a que se seguiu uma explicação caso a caso, ilustrada por fotos:

Quero desde já felicitar o município da Nazaré, e mais directamente o Museu Joaquim Manso na pessoa da sua coordenadora, Dra  Dóris Santos, pela iniciativa desta exposição sobre José Pereira Cardina, fabricante de relógios de torre, figura carismática da primeira metade do século XX desta comunidade.

E agradecer, na pessoa do nazareno Eng. Rui Remígio, o convite que me foi feito para aqui falar dessa relojoaria de torre no contexto nacional.

Fascina-me o Tempo, em todas as suas dimensões – social, científica, artística – e desde há mais de quatro décadas que procuro coligir elementos sobre ele. Sendo por definição intangível, é por vezes difícil descobrir o rosto do Tempo. Sem as formas como ele se manifesta – há teorias dizendo que o Tempo não existe, não passa de uma ficção lógica e racional arranjada pelo nosso cérebro para explicar o quotidiano que chamamos de realidade – o Tempo não é nada. Uma dessas formas está ligada à sua medição. Relógios de sol, de água, de areia, mecânicos, eléctricos, atómicos, todos materializam à sua maneira a seta do tempo.

Hoje, e para não perder mais tempo, tentarei dar-vos alguns elementos sobre uma espécie de relógios. Há muitos nomes para esse segmento da relojoaria mecânica – públicos, em antítese com o tempo privado; de torre, porque estão geralmente em torres; férreos, porque o seu material primitivo foi o ferro (e feitos também de início nas forjas de ferreiros e armeiros); relojoaria grossa, em contraponto com a relojoaria média (de sala e de mesa) ou fina (de pulso ou de bolso). A relojoaria grossa e média é também chamada de pendular. O pêndulo, órgão regulador da marcha do mecanismo, é substituído na relojoaria fina pelo conjunto balanço/espiral.

Mas deixemos estes pormenores mais técnicos, até porque não sou relojoeiro.

Os relógios mecânicos de torre terão começado a ser usados no seio de comunidades religiosas, mais para regular os ritmos das orações diárias, dentro das chamadas horas canónicas, do que para indicar horas civis. Não se sabe quem foi o autor ou autores desta invenção – uma das maiores da civilização ocidental. Mas o relógio mecânico é uma das matrizes da superestrutura dessa civilização – medir e marcar tempo racionaliza o dia-a-dia, irá mesmo dar, com o movimento da Reforma à ideia de que Tempo é dinheiro.


Horologia Ferrea, 1638, gravura mostrando uma oficina de relojoaria

Quando esses relógios mecânicos apareceram, em Itália primeiro ou em Inglaterra, no final do século XII ou início do século XIII, os mosteiros e conventos que os usavam prescindiam da intervenção humana para ditar as horas de orar, até então medidas por frades que recitavam sem parar textos sagrados ou por velas que, ao arderem, deixavam cair pequenas campainhas de alarme.


O Relógio da Sapiência, circa 1450 (Deus, Relojoeiro Supremo do Universo e da sua Harmonia)

Nestes primórdios da relojoaria mecânica, o tempo é sobretudo sonoro. Os relógios não têm mostrador. Os mecanismos fazem soar sinos, esses outros objectos pilares da civilização ocidental. O som não tem fronteiras. E as comunidades adjacentes aos mosteiros e conventos ouvem os sinos indicando as horas canónicas.


Sandro Botticelli, Santo Agostinho no seu Scriptorium, 1480 (no canto direito, um relógio)

Só mais tarde os relógios passam a ter mostrador. Mas apenas com um ponteiro, o das horas, dada a pouca exactidão dos mecanismos, por um lado, e também porque o tempo das sociedades é sobretudo regido pelo sol e pêlos outros ritmos naturais.

O ponteiro dos minutos generaliza-se apenas com a introdução do pêndulo, cujas leis foram descobertas por Galileu e aplicadas à relojoaria por Huygens. A exactidão dos relógios passou a ser muito maior, e passaram a soar quartos e meias horas.

Apenas com a electrificação dos mecanismos o ponteiro dos segundos se generaliza na relojoaria de torre. Feita esta introdução, falemos agora de Portugal.

Possivelmente, os primeiros relógios mecânicos em território nacional terão existido no seio de comunidades religiosas. Isso tem ainda mais lógica quando sabemos que os beneditinos, com a sua preocupação de dividir o tempo em orar e laborar, foram dos mais entusiastas em usar relógios mecânicos no seu quotidiano. E que os beneditinos na forma reformada de Cister tiveram um peso substancial na formação de Portugal. Mas, até hoje, não se encontraram documentos validando essa teoria.

O primeiro relógio mecânico de que se tem conhecimento em território português é o colocado em 1377 na Sé de Lisboa, pago em partes iguais pelo rei D. Fernando, pelo cabido e pelos homens bons da cidade. O poder religioso emite tempo, mas o poder político e o poder económico associam-se ao esforço de investimento. Teria sido o seu autor um tal “mestre João, francês”. Não tinha mostrador, as horas eram para se bater (no sino) e não para se mostrar. Até pelo menos 1580, não teve mostrador. Sabemos isso porque o senado de Lisboa pede a Filipe II, quando este visita a cidade, um mostrador para o relógio da Sé.

Um dos primeiros relógios, além do da Sé, seria o de São Vicente de Fora.

Fora, das muralhas.

E fora de portas ficavam também a Judiaria ou a Mouraria. Um sino, de colher, ou da colhença, marcava todas as noites a hora de recolher – fechavam-se as portas. De manhã, o mesmo sino dava o sinal da abertura das portas. Ele era comandado pelo relógio da Sé. O tempo religioso comandava o tempo social. O casamento de D. João I com Filipa, da casa de Lencastre, dá a Portugal acesso a centros de saber científico e de produção de relógios, pelo que nessa altura há importação de exemplares ingleses para várias cidades do país.

Só com D. Manuel I o Paço é transferido do Castelo para junto do rio – era a época da Expansão. E um relógio, o do Paço, tem a partir de então uma importância grande para a cidade. O poder político já rivaliza com o poder religioso na marcação do tempo.

Frei João da Comenda, franciscano, é o primeiro relojoeiro nacional de que há notícia – 1478. Um dos seus relógios, restaurado, está em Orgens, Viseu.

Conta-se que, batendo o relógio do Paço três horas, o rei, D. João III, terá dito que ele estava sempre a mentir. Resposta de um dos cortesão: "Se Vossa Majestade quer que ele fale verdade, afaste-o da Corte"... Em 1654, D. Francisco Manuel de Melo publica Os Relógios Falantes, um texto de crítica social, onde utiliza dois relógios de torre, um do campo, (Belas) e um da cidade de Lisboa (Chagas). É um documento precioso para se saber do estado da relojoaria e dos tempos sociais. O relógio das Chagas, por exemplo, diz a dado passo: todos que nos governam trazem seus relógios consigo. O tempo tinha-se portabilizado, com a invenção da corda helicoidal.

No texto referem-se o Relógio da Universidade de Coimbra, o Relógio da Sé e o Relógio do Paço - Mas sabemos que, por essa altura, também o poder judicial tinha o seu próprio marcador de tempo: o relógio da casa da Suplicação (supremo) é referido em várias fontes, e ficava no Limoeiro. Um marcador de tempo no Tribunal da Apelação, a Casa da Suplicação, que estava na Ribeira e foi transferida para o Limoeiro em 1584 – tempo e justiça

No texto de D. Francisco Manuel de Melo fica a saber-se que o relógio das Chagas foi a dada altura para o Paço e o Palatino (romano) para as Chagas, depois trocaram. Importava-se pois de Itália.

Anexim coevo: Em mulher de Alfama, homem do mar e relógio das Chagas não há que fiar. O que atestaria da pouca qualidade do referido marcador de tempo.

Em 1640, é pelo relógio do Paço que os revoltosos marcam o tempo da sua operação militar. Em dando as nove horas…

Com D. João V atinge-se o auge da relojoaria férrea nacional – o paradigma são os dois relógios flamengos, e respectivos carrilhões, que o monarca comprou para Mafra. D. João V mandou equipar igrejas, conventos, mosteiros, municípios, com relógios de torre e de sol. Os relógios de sol serviam para acertar diariamente os relógios mecânicos, ao meio-dia solar verdadeiro.

A Torre do Relógio, no Paço, adstrita à Patriarcal, foi demolida e encomendada uma outra a um arquitecto italiano, Canevari. Teve fama essa torre e o seu relógio. Mas pouca duração. O terramoto de 1755 foi o primeiro grande cataclismo que se abateu sobre a relojoaria grossa nacional.

A torre do galo, na Ajuda

O Paço não volta ao rio – fica-se pela Real Barraca da Ajuda, com a Patriarcal e a sua torre do relógio. Foi marcador importante de tempo para as gentes dali – está a cair

O segundo cataclismo na relojoaria grossa nacional ocorreu com as Invasões Francesas – 1807/1810 – os sinos eram derretidos para fazer balas de canhão, e algumas máquinas sofreram o mesmo destino.

A terceira hecatombe que se abate sobre a relojoaria grossa é a extinção das ordens religiosas, em 1834. A maioria do património relojoeiro mais antigo de torre encontrava-se em conventos e mosteiros, que ficaram anos ao abandono, foram depois vendidos a particulares. Mas nos inventários e arrolamentos de bens dessa altura são mencionados muitos relógios.

O arco da Rua Augusta

O relógio veio do colégio de Jesus, hoje Academia das Ciências, e não tinha mostrador, foi adaptado por Augusto Justiniano de Araújo, fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia.

O relógio do Museu Militar, construído no século XVIII por F. Baerlein, o único relógio público existente nos bairros de Santa Apolónia, Santa Clara e Alfama.

O tempo ligado ao saber científico

Desde 1857 que funcionava a partir do Observatório Astronómico do Castelo de São Jorge um sistema de meridiana, da autoria de Veríssimo Alves Pereira. Ao meio-dia solar, o sistema fazia troar uma pequena peça de artilharia. A meridiana mudou-se depois para a Escola Politécnica. Funcionou até cerca de 1915. Este foi o quinto marcador colectivo do tempo lisboeta, mas das meridianas nada resta.

Os caminhos de ferro, os observatórios, a electricidade, os telégrafos, os fusos horários, o meridiano de Greenwich, a explosão de marcadores públicos de tempo.

Com a electricidade, surge o relógio emissor, relógio-mãe e os relógios escravos, as redes de tempo. o Tempo passa a poder ser transmitido.

Desde 1858 que funcionava junto ao Observatório Astronómico da Marinha o chamado Balão do Arsenal, um dispositivo que assinalava diariamente as 13h00 com a queda de um balão de um mastro e um sinal sonoro. Este foi o sexto marcador colectivo do tempo na capital, mas também dele nada ficou.

O relógio do Noviciado da Cotovia / Colégio dos Nobres / Escola Politécnica / Faculdade de Ciências foi importante para a zona desta colina de Lisboa.

Ao fundar-se em 1837 a Escola Politécnica, foi-lhe anexado o Real Observatório Astronómico de Marinha.

Ali funcionou, durante algum tempo, o serviço da “hora oficial”, com um canhão a disparar à uma da tarde. Mas a acuidade do sistema era pouca e os lisboetas não se fiavam lá muito nele. “Os que ainda se lembram deste sinal horário, sabem que ele enchia toda a cidade e fazia estar alerta os cidadãos que se jactavam da chamada ‘pontualidade inglesa’. Servia de fulcro às mais alegres anedotas correntes de boca em boca e preenchia os serões familiares, dando os mais divertidos temas aos folhetinistas jocosos da época”, refere Mário Costa nas suas Duas Curiosidades....

O canhão e a meridiana passariam depois para o Jardim de São Pedro de Alcântara, onde ficaram ainda algum tempo, sendo depois retirados.

A 4 de Dezembro de 1883, o relógio do Arco da Rua Augusta é finalmente colocado. Veio do Convento de Jesus (hoje Academia de Ciências), não tinha mostrador, e foi adaptado por Augusto Justiniano de Araújo, o fundador da escola de relojoaria da Casa Pia. Com mostrador para terra e não virado para o mar, como esteve previsto. É o tempo comercial por excelência. Mas, sintomaticamente, não está ligado à rede da hora oficial.

A Hora Legal

O Anuário Comercial de Portugal (ACP) de 1906 recordava: “A uma da tarde, hora oficial, é anunciada por um tiro de peça dado na Escola Politécnica. A hora é telegraficamente transmitida do observatório da Tapada”.

Desde 1915, ano em que o Balão do Arsenal desapareceu, que funcionou, ao Cais do Sodré, o relógio da Hora Legal, com o tempo a ser emitido por circuito eléctrico a partir do Observatório Astronómico de Lisboa. Depois de vicissitudes várias, o sétimo e último grande marcador do tempo colectivo da capital deixou de poder ostentar o título de Hora Legal. (Mas, actualmente, embora não ostente já a frase "Hora Legal", é o único marcador público de tempo certo no país, pois tem um computador em diálogo com outro no Observatório Astronómico de Lisboa - única autoridade portuguesa emissora de tempo legal).

Até aqui, o tempo era sempre local. O tempo de Lisboa não era o Tempo de Mafra e muito menos o de Coimbra ou do Porto. Só com o advento dos caminhos-de-ferro e do telégrafo se passou a sentir a necessidade de um Tempo nacional, primeiro, continental, a seguir, universal, depois.

Entrara em cena o tempo emitido por instituições científicas. Auxiliado por meridianas – relógios de sol, acoplados a pequenas peças de artilharia, que faziam soar diariamente (em dias de sol), o meio-dia. Veríssimo Alves Pereira, que começou por colocar uma na Torre dos Clérigos, no Porto, convenceu a edilidade lisboeta a colocar uma no castelo de São Jorge (1857). Esse tipo de dispositivo passou depois para a Escola Politécnica (que estava ligada por linha telefónica ao observatório da Ajuda, para saber a hora exacta, já não por relógio de sol); e finalmente para o jardim de São Pedro de Alcântara. A meridiana terá deixado de soar por volta de 1912. Veríssimo Alves Pereira também intervém no relógio do Convento do Carmo, outro marcador importante do tempo alfacinha, regulador dos ritmos comerciais da Baixa.

Em 1878, o Real Observatório Astronómico de Lisboa (OAL, criado em 1861) tem como objectivo: "Fazer a transmissão telegraphica da hora official ás estações semaphoricas e outros pontos do paiz". Está-se perante o primeiro caso de tempo coordenado, emitido por um relógio-mãe a relógios escravos.

Só a partir de 1 de Janeiro de 1912 a hora legal em todo o território da República Portuguesa fica subordinado ao meridiano de Greenwich, aderindo finalmente o país à Convenção adoptada em Washington em 1884 e que estabeleceu o sistema dos fusos horários.

Assim, nesse dia, os relógios foram adiantados em Portugal continental 36 minutos, 44 segundos e 68 centésimos, além de que desaparecia a diferença de cinco minutos entre os relógios internos e exteriores das estações ferroviárias. Nos demais territórios da República Portuguesa a alteração foi feita em harmonia com o fuso horário onde passaram a ficar inseridos.

Estações dos CTT, fluviais, caminhos-de-ferro - todas elas ostentando marcadores de tempo públicos, geralmente de grande qualidade.

Como diria um humorista francês cujo nome não recordo – preocupo-me quando vejo entre a assistência quem olhe discretamente para o relógio. Mas fico verdadeiramente alarmado quando vejo gente a abanar o pulso, certificando-se de que o relógio está a trabalhar…

Passemos, finalmente, das palavras às imagens, pedindo-lhes desculpa por este intróito a seco.

[segiu-se a passagem de imagens, com exemplos de relojoaria grossa, de norte a sul do país, revelando um estado da arte que há muito vem sendo por nós denunciado, como, por exemplo, aqui.]

Para terminar, citemos Pessoa:

Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. […]

O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. […]

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:

“Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!” Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado”. […]

Arriscaria que Bernardo Soares / Fernando Pessoa, ao saírem do Martinho da Arcada, e olhando inúmeras vezes para o relógio do Arco, se terão inspirado nele para este pensamento desassossegado.

Em baixo, fotos do evento (Manuel Moura)



Rui Remígio, à direita











Ao centro, Hermínio de Freitas Nunes, relojoeiro de torre


Em baixo, fotos do Museu Dr. Joaquim Manso









Em baixo, fotos de Sérgio Costa Cardina

















 










































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