Nos jardins da Fundação Mário Soares, há 12 anos
Nos últimos anos assistimos a uma deriva deste capitalismo selvagem. O mundo vira para a direita depois da Guerra-fria. Não era lógico que assim fosse, pois quem ganhou a batalha foi o socialismo democrático e a social-democracia, que se opuseram no terreno, na linha da frente, ao avanço do comunismo. Mas aconteceu. A partir daí, analisando essa nova realidade, defini-me contra ela, porque achei que é má para o mundo. Houve, entretanto uma evolução. Uma clivagem, que passou, por exemplo, pela guerra do Iraque, pelo desrespeito pelas Nações Unidas. Eu não mudei. O mundo mudou e eu continuei a defender as posições de sempre, com coerência.
Em Agosto de 2004, era publicada uma grande entrevista a Mário Soares, na revista Homem Magazine, por ocasião dos 80 anos do político. Conversa conduzida por Eduardo Fortunato de Almeida, Fernando Correia de Oliveira e Cláudia Baptista. Fotos de Carlos Ferreira Marques.
Homem Magazine – Tem-se pronunciado nas últimas semanas, em várias ocasiões, sobre a actual situação política em Portugal. E o tom dessas intervenções, ao contrário do que é habitual em si, é muito pessimista. Qual a razão dessa perda de optimismo no futuro do país?
Mário Soares – A médio prazo, estou optimista, porque acredito em Portugal e nos portugueses, e acredito que vai haver uma reacção. Mas sou profundamente crítico de três coisas: primeiro e por ordem cronológica, da decisão do Presidente da República em aceitar a solução proposta pelo PSD e pelo PP, porque acho que abriu a porta a duas coisas que são perigosas: uma deriva da coligação, cada vez mais para a direita, que faz pensar se a instabilidade não irá continuar. E eu acho que vai até aumentar. Por outro lado, o Presidente fica, de alguma maneira, prisioneiro do próprio Governo. Vasco Pulido Valente disse-o, Marcelo Rebelo de Sousa, também – isto significou o fim do mandato de Jorge Sampaio. Eu não vou tão longe, mas acho que é um precedente que se abre no regime semi-presidencialista, e é um grande argumento a favor daqueles que são pelo regime parlamentar puro. A segunda questão é que não aceito a fuga do primeiro-ministro para Bruxelas. Digo-o abertamente, disse-lhe isso em pleno Conselho de Estado. Dois outros primeiros-ministros tinham sido convidados antes dele – o do Luxemburgo e o da Holanda – e recusaram o convite porque tinham compromissos para com o seu próprio eleitorado. Ora, se há alguém que tivesse um compromisso profundo para com o eleitorado era o Dr. Durão Barroso. Porque no dia 13 de Junho veio dizer publicamente que compreendia os sinais, mas que iria continuar ao leme, para os emendar, e que até estaria disposto a concorrer a um segundo mandato. Duas semanas depois, vai para Bruxelas. Isso mostra uma inconstância, uma leviandade, que não são aceitáveis num primeiro-ministro. A terceira questão é que ele escolheu o seu sucessor dentro do partido. Podia ter feito aí alguns desvios, podia ter designado, por exemplo, a segunda figura do seu Governo, a ministra das Finanças, Dr.a Manuela Ferreira Leite, para continuar a política de restrição financeira (que até penso que foi um pouco cega), e que só tem sentido se for prosseguida. Se não, foram sacrifícios impostos à Nação e, para nada! Em vez disso, Durão Barroso designou logo como futuro primeiro-ministro o número dois do seu partido. Se, no PSD, isso fazia algum sentido, na chefia do Governo, já não. O Executivo poderia continuar o mesmo, essa solução poderia ter sido sugerida ao Presidente da República, que certamente a teria aceitado com prazer. Mas Durão Barroso fez o que se sabe e criou esta situação, que não augura nada de bom. Entrámos num período muito difícil, que não sabemos onde nos vai conduzir. Estou consciente desta situação, a maioria do povo português continua a sofrer duramente com a crise económica, está muito descontente, e sem rumo. Mas acredito na possibilidade de recuperação do país. Vão aproximar-se grandes batalhas políticas e, sobretudo, sociais, no terreno. É possível que, daí nasçam outras soluções.
Homem Magazine – Uma das grandes batalhas políticas que vem aí, e que agora até ganhará outro peso, é a da corrida à Presidência da República. Estaria disposto a voltar a candidatar-se, como continuam a insistir alguns analistas?
Mário Soares – Disse aos portugueses e continuo a dizer que houve um tempo em que assumi responsabilidades políticas – e cumpri-as todas. Nunca abandonei, incluindo o Parlamento Europeu. Paulo Portas disse-me em campanha eleitoral – “o senhor não aguenta um mês”. Ele é que não aguentou um mês, eu cumpri cinco anos, com muito gosto e até paixão. Agora, não quero assumir mais responsabilidades políticas, nem partidárias nem não partidárias. Quero dedicar-me a outras coisas, estou a escrever muito, a publicar livros. Estive dez anos na Presidência e não quero voltar ao cargo, porque não faria certamente melhor do que já fiz.
Homem Magazine – Quer, desde já, expressar o seu apoio a figuras da área socialista, como António Guterres, Ferro Rodrigues ou António Vitorino?
Mário Soares – Não, não! Isso está tudo em aberto. Na altura própria os socialistas vão decidir.
Homem Magazine – Como é que viu a recusa de António Vitorino em candidatar-se à liderança do PS?
Mário Soares – Não me surpreendeu.
Homem Magazine – Mas agradou-lhe, desagradou-lhe?
Mário Soares – Nem uma coisa, nem outra. Não me surpreendeu. Nunca pensei que ele aceitasse vir. António Vitorino já foi convidado várias vezes para várias coisas e pôs sempre a sua carreira acima dos interesses do Partido Socialista.
Homem Magazine – Acha que o PS, se o Presidente tivesse dissolvido o Parlamento, estava preparado para as eleições antecipadas? Não havia o perigo de, mesmo com uma vitória, ela não ser de maioria absoluta, tornando a situação política ainda mais instável? Mário Soares – Não tenho dúvida nenhuma de que ganhava, esse era o sentido do voto dos portugueses nas Europeias. Foi por isso que Ferro Rodrigues se demitiu, porque sentiu que o PS iria ganhar. Menos por mérito próprio e mais por demérito do Governo, devo acrescentar.
Homem Magazine – Como vê a actual corrida à liderança do PS, onde temos o seu filho João a participar, e o sr. a apoiá-lo?
Mário Soares – Isso não surpreende ninguém. O contrário é que seria de espantar, sendo meu filho, que eu não fosse solidário com ele. Mas até acho que o João é um bom candidato. Poderá não ganhar, porque dá a impressão de que há muitas coisas dentro do aparelho partidário que estão já decididas e organizadas. Mas é preciso que se perceba que o António Guterres mudou os estatutos do PS, fazendo com que o Secretário-Geral seja eleito directamente pelos militantes, quando antes era o nome que liderava a lista para a Comissão Nacional, aquele que personificava a moção mais aprovada em Congresso. São os militantes socialistas, cerca de 75 mil, que vão votar directamente, na escolha do Secretário-Geral. A candidatura do João não se faz com combinações de cúpula, baseada em jogos. Faz-se dirigida directamente aos militantes. Espero que o processo eleitoral decorra de forma correcta e participada, como é da cultura de um partido democrático como o PS. Que não haja arranjos internos, dentro das Secções.
Homem Magazine – Como vê a candidatura de Manuel Alegre, seu amigo pessoal, e que se situa na mesma área da candidatura do seu filho?
Mário Soares – Não vejo com grande preocupação. As duas têm programas muito semelhantes, podem mais facilmente entender-se. E vão estar preocupadas em fiscalizar de perto o processo eleitoral, mobilizando os militantes a votarem. O haver três candidaturas dá uma grande animação ao partido e, daí, poderá sair uma grande mobilização.
Homem Magazine – Vai falar ao seu amigo Manuel Alegre, para o convencer a desistir a favor do seu filho?
Mário Soares – Não, não! Estou fora desse jogo. Quem deve falar um com o outro é o João e o Alegre.
Homem Magazine – Sente-se desiludido se ganhar José Sócrates?
Mário Soares – Desiludido? Não. Acho é que está tudo arranjado dentro do aparelho do partido para que isso aconteça.
Homem Magazine – Sócrates não seria o melhor adversário de Pedro Santana Lopes?
Mário Soares – Penso que não. Porque são muito parecidos. Fica a suspeita de que se não foram “feitos” da mesma maneira. Os espanhóis dizem que não acreditam em bruxas, mas que as há, há… Devemos interrogarmo-nos sobre porque é que, com tanta antecedência, estiveram a “fabricar” na televisão dois líderes mediáticos, durante um ano, num jogo em que ambos estavam interessados na sua própria promoção.
Homem Magazine – Não há, aí, uma certa teoria conspirativa da História? Quem é que “fabricou” Sócrates e Santana Lopes?
Mário Soares – Não sei. Mas há hoje em todas as democracias uma inter-penetração entre os meios de comunicação social e o poder político. Fala-se de uma “democracia mediatizada”, no sentido de se dizer que os media podem influenciar de tal maneira o poder político, que o dominam. É como dizia o Emídio Rangel – “posso vender sabonetes, também posso fazer um Presidente da República”. Os media estão cada vez mais concentrados, nas mãos de cada vez menos grupos económicos, dos mais poderosos do país. Os jornalistas começam a sentir-se., eles próprios, um pouco condicionados.
Homem Magazine – Voltámos “ao antigamente”?
Mário Soares – Podemos voltar. Ainda há liberdade de imprensa.
Homem Magazine – Mas a concentração dos media nos grandes grupos económicos, não lembra a situação antes de Abril de 1974?
Mário Soares – Era diferente. Com os regimes de Salazar e Caetano, era o poder político que mandava nos media. Mesmo quando esses media eram do poder económico, só era publicado o que o poder político achava conveniente. Os grupos económicos eram, também eles, dominados pela vontade do ditador. Agora, é a política que está a ser dominada pelo poder económico, e através dos media.
Homem Magazine – Conhece Pedro Santana Lopes?
Mário Soares – Conheço-o mal, falei apenas com ele umas três ou quatro vezes. Mas quem o conhece, o retrato que faz é o de um homem mediático, simpático, mas leviano nas suas apreciações, que muda de ideias como se muda de camisa. A figura de Santana Lopes é errática do ponto de vista político. Como se sabe, deixa a Câmara de Lisboa também de forma leviana, visto que se comprometeu a cumprir pelo menos os cinco anos do mandato, e deixa-a num estado deplorável, com 100 milhões de euros de dívidas. Quanto à cidade, estão embargadas as obras do túnel do Marquês, a Feira Popular está completamente à deriva, as promessas que fez para o Parque Mayer, com um arquitecto que ganhou um balúrdio de dinheiro, ficaram no tinteiro porque não são exequíveis, o Casino não se sabe onde vai parar…
Homem Magazine – E, no Governo, Santana Lopes está bem rodeado?
Mário Soares – Com algumas, raras, excepções, acho francamente que não. De nomes, não falo, seria desagradável. Mas a trapalhada da formação do Governo, desde logo, a modificação orgânica, a ideia de mandar ministérios para fora de Lisboa, tudo isso são sinais negativos, e o País decerto que gostaria de saber o que irá custar, em termos de tempo e de dinheiro, em tempos de dificuldades económicas.
Homem Magazine – Como é que reage ao facto de alguns jornais compararem Pedro Santana Lopes a si, considerando-os aos dois “animais políticos”, que se servem sobretudo do instinto e da capacidade de comunicação?
Mário Soares – Bom… Não considero era imagem lisonjeira. Mas reconheço aos jornalistas o direito de dizerem o que quiserem, mesmo quando dizem coisas que me parecem erradas. Acho que não há nenhuma ligação entre nós, porque eu tenho um percurso longo e conhecido. Nunca estive na política para ganhar dinheiro, 32 anos da minha vida passaram-se a lutar contra as ditaduras de Salazar e Caetano, sem qualquer transigência! Fui preso, perseguido, deportado e depois obrigado ao exílio. Quando foi o 25 de Abril eu tinha 49 anos, estava a meio da vida, até um pouco mais do que meio… Nestes últimos 30 anos, tive um percurso que também é linear, sempre no Partido Socialista, nunca quis fundar outro partido. Agora, que desisti da vida partidária, continuo a ter as mesmas causas, a bater-me por elas.
Homem Magazine – Acusam-no de ter esquerdizado o seu pensamento.
Mário Soares – Acusaram-me já de ser “o homem dos americanos” em Portugal, quando liderei a ofensiva totalitária, em 1974/75…
Homem Magazine – Sentiu que, nessa altura, era todo um povo que estava consigo, que esteve a seu lado na manifestação da Fonte Luminosa?
Mário Soares – Claro, e com um papel muito activo da Igreja católica. Eu não esqueci isso. Mas também a Igreja não se deve esquecer que, quando cheguei a Portugal, em 1974, tinha uma ideia perfeitamente clara – a de não podermos cometer os erros da I República e cair no anti-clericalismo, como defendia uma corrente dentro do Partido Socialista, composta essencialmente por velhos republicanos. Opus-me ao totalitarismo comunista no Verão Quente de 75, mas também me opus à ilegalização do Partido Comunista e ao massacre do PC e da extrema-esquerda, porque isso fazia-nos entrar no mundo do Pinochet. Eu dizia então – “Nem Allende, nem Pinochet”. Isso é que é coerência.
Homem Magazine – Não considera, então, que o seu pensamento se tenha “esquerdizado” nos últimos anos?
Mário Soares – Nos últimos anos assistimos a uma deriva deste capitalismo selvagem. O mundo vira para a direita depois da Guerra-fria. Não era lógico que assim fosse, pois quem ganhou a batalha foi o socialismo democrático e a social-democracia, que se opuseram no terreno, na linha da frente, ao avanço do comunismo. Mas aconteceu. A partir daí, analisando essa nova realidade, defini-me contra ela, porque achei que é má para o mundo. Houve, entretanto uma evolução. Uma clivagem, que passou, por exemplo, pela guerra do Iraque, pelo desrespeito pelas Nações Unidas. Eu não mudei. O mundo mudou e eu continuei a defender as posições de sempre, com coerência. Com todo este passado, como é que me podem comparar com Pedro Santana Lopes? Dizem que sou mediático? Aceito que foi através da capacidade de convencimento das pessoas que pude cavalgar essa onda, depois do 25 de Abril. Se não, teria sido eu próprio destruído politicamente. E muitas vezes pensei que isso poderia acontecer. Também não era morte de homem…
Homem Magazine – Naquele período conturbado, sentiu medo?
Mário Soares – Medo, propriamente, não. Não sou muito dado a medos.
Homem Magazine – Medo de que o Partido Comunista tomasse conta do país…
Mário Soares – Ah, isso… Pois, toda a gente dizia isso. O Kissinger disse-me isso, com todas as letras. Não o mandou dizer por ninguém.
Homem Magazine – Até lhe disse que poderia vir a ser o Kerenski da Europa…
Mário Soares – Exactamente. Disse-me que eu tinha que ficar na América, pois seria morto, fuzilado, ou preso para toda a vida, quando regressasse. Ele dizia isso baseado na experiência de todos aqueles que se tinham oposto à vaga comunista quando eles tinham chegado ao poder, como tinham chegado em Portugal. E eu disse-lhe que não, que iria voltar, e que conseguiria evitar o que se evitou.
A tese dos americanos, nessa altura, era a da “vacina”, não era a tese europeia. O Frank Carlucci só vem depois. Inicialmente, os americanos raciocinavam assim – “Portugal vai para o comunismo, é uma vacina para toda a Europa ocidental, nunca mais haverá comunismo ali”. Era uma tese profundamente errada e que nos massacrava, como povo.
Homem Magazine – É verdade que a Espanha esteve pronta a invadir Portugal, no caso de uma tomada de poder pelos comunistas?
Mário Soares – Não, nunca esteve. Tenho a certeza. Falei com Fraga Iribarne em Junho de 1974, era ele embaixador em Londres. Fraga garantiu-me, absolutamente, que a política espanhola era de estrita neutralidade, e que não haveria incursões a partir do seu território, como eu temia, e que tinha ocorrido com as forças monárquicas nos tempos da I República. Da mesma maneira que receei que os sul-africanos criassem, com as minorias brancas, sobretudo em Moçambique, como tinha sido feito na Rodésia, hoje Zimbawé.
Homem Magazine – O Processo Casa Pia é mais um elemento a contribuir para o quadro geral de pessimismo. Que balanço faz dele?
Mário Soares – O processo foi demasiado mediatizado e penso que terá sido mal organizado. É uma montanha que pariu um rato. O Processo Casa Pia foi usado para destruir um homem chamado Ferro Rodrigues. Nisso, estive sempre solidário com ele, porque o conheço desde pequeno, porque tenho a profunda convicção de que ele nada tem a ver com pedofilia. Tudo isto é extremamente grave para a Justiça e para a Democracia. Também aí se poderia ter uma visão conspirativa da História, como me disse há pouco, e que eu nunca tive – mesmo nos momentos mais difíceis da minha vida. Também no Processo Casa Pia as coisas não são muito claras. Porque é que foi assim, como foi articulado, ainda se está por saber. Mas, um dia, vai saber-se.
Homem Magazine – Com a crise económica e financeira, numa sociedade portuguesa deprimida, em que as instituições estão afectadas por sucessivos escândalos de corrupção, desde os médicos aos advogados, dos políticos aos empresários, das polícias às magistraturas, a democracia está em causa?
Mário Soares – Este é um fenómeno que não se passa só em Portugal. Ocorre a nível mundial. Nunca os interesses falaram tão alto e tão à-vontade em Portugal como agora. Não quer dizer que não possam falar. Mas, não é por serem economicamente poderosos, que podem governar. A democracia é o Governo por aqueles que são eleitos pelo povo.
Homem Magazine – Na eleição do Presidente da Comissão, no Parlamento Europeu, Sérgio Sousa Pinto votou contra. O que lhe parece isso?
Mário Soares – Honra lhe seja feita! Não faz sentido votar em alguém que achamos que é mau, só porque é português. Ou se faz uma apreciação positiva, e então, independentemente do partido da pessoa, vota-se nela. Ou se faz uma apreciação negativa, e vota-se contra.
Homem Magazine – Se estivesse presente na votação, votaria então contra Durão Barroso?
Mário Soares – Absolutamente. Não me ouviram dizer uma palavra pela circunstância de o PSD, quando eu era candidato à Presidência do Parlamento Europeu, ter votado contra mim. Porque eu achava que essa era a regra do jogo. O que me surpreende, e muito negativamente, é que haja socialistas que tenham votado Durão Barroso só por ele ser português. É porque não são europeístas a sério. No fundo, não têm convicções. Até lhe digo mais: acho que o Sousa Franco, se estivesse vivo, não votaria a favor de Durão Barroso. E ele nem era sequer militante do PS.
Homem Magazine – Está mais pessimista do que há alguns anos quanto ao futuro da Europa. Considera o novo Tratado Constitucional um passo na direcção certa? Estaria disposto a participar numa campanha a favor dele, em caso de referendo em Portugal?
Mário Soares – A Constituição Europeia não é perfeita, deve ser modificada no futuro, mas é um grande passo em frente, no caminho da União Europeia como uma Federação de Estados, como eu sempre defendi. Se houver um referendo, vou empenhar-me patrioticamente pelo “sim”. Um “não” seria uma tragédia para Portugal.
Mundo
Homem Magazine – Este é o “fim da História”, como previu Francis Fukuyama, com a vitória da economia de mercado e dos regimes liberais em todo o mundo?
Mário Soares – Claro que não. Já se percebeu que o Fukuyama se enganou. Nunc ative dúvidas a esse respeito nem também quanto à seriedade e legitimidade da chamada Terceira Via do Tony Blair. Estamos numa situação muito complexa do mundo. Por um lado, acho que este sistema neo-liberal, que nos tem governado desde o fim da Guerra-fria, e que avançou como se fosse um dogma indiscutível, vai arrastar o mundo para uma catástrofe. Cito-lhe um grande economista, que foi vice-presidente do Banco Mundial, Prémio Nobel, e que foi conselheiro económico do Bill Clinton. Joseph Tigliz tem um livro que, em inglês tem um título anódino, algo como “Os Difíceis Anos 90”. Mas a tradução francesa tem um título que já descreve melhor do que trata a obra – “O Capitalismo Perdeu a Cabeça”. E a tese é a de que o sistema capitalista, que se baseava nos seus inícios no respeito da palavra dada, na ética protestante – e foi isso que o fez expandir-se – alterou a sua qualidade. Deixou de ser produtivo para ser essencialmente financeiro e especulativo. O facto de ser especulativo faz com que o dinheiro sujo, que vem das actividades criminosas, como o tráfico de droga ou a prostituição, não se distinga já do dinheiro limpo. Ele entra nas sociedades e não há possibilidade de controlo. Isso leva a uma situação muito insegura para o próprio sistema capitalista. Veja-se o caso dos escândalos nas grandes empresas multinacionais norte-americanas, como a Enron, com orçamentos superiores à maioria dos Estados nacionais, e que têm à sua frente pessoas que são verdadeiros gangsters. Especulam com o capital dos accionistas, arruínam-nos. Na Europa, a Vivendi, é um caso parecido.
Homem Magazine – O capitalismo perdeu a ética?
Mário Soares – O capitalismo perdeu a ética. E isso é de uma grande gravidade para o futuro. Estamos numa economia globalizada, num processo apoiado no neo-liberalismo. Isso está a aumentar o fosso entre países ricos e pobres. Cada vez há mais pobres e cada vez há menos ricos. Dois terços da humanidade vivem abaixo do limiar mínimo.
Homem Magazine – Falta a liderança política dos deserdados… Até há pouco tempo, houve uma vanguarda que agitou a bandeira do comunismo, ideologia que prometia acabar com a injustiça social. Mas o comunismo desapareceu, e não foi ainda substituído, como ideologia e como prática.
Mário Soares – Há outra coisa, a esquerda globalizada. Que começa a ter força e se manifesta através de acontecimentos a nível global. Veja-se as reuniões de Porto Alegre ou as grandes manifestações que tem havido por toda a parte, desde Seattle, que foi onde tudo começou?
Homem Magazine – Esse movimento parece não ter líderes.
Mário Soares – Justamente. É um movimento novo, que funciona por via das novas tecnologias, do telemóvel e da Internet. Como é que se explica a vitória do Partido Socialista espanhol, em poucas horas, nas últimas eleições? Este é um fenómeno que tem que ser observado com muita atenção. Da primeira vez que se reuniu Porto Alegre, foi ao mesmo tempo que Davos. Era o mundo dos ricos a dizer como é que as coisas se iriam passar, contra o mundos dos pobres, a avançar com as suas soluções alternativas. Davos não ligou ao que se estava a passar no Brasil. Mas, da segunda vez, em Davos já se reflecte a sério sobre estes problemas.
Esta globalização selvagem, sem ética, que está a ocorrer, tem que contar com o mundo dos pobres. Ainda agora, em Cancun, a Organização Mundial de Comércio foi bloqueada por uma aliança inesperada entre o Brasil, a China, a Índia, a África do Sul…
Homem Magazine – Pode falar-se de um novo Bandung, de um novo Movimento dos Não-alinhados?
Mário Soares – Não se pode raciocinar em termos de Guerra-fria. Pensemos em termos do futuro. Este movimento está a contaminar também as manchas de pobreza que existem nos países ricos. Porque não são só os países pobres que sofrem com a globalização. A proletarização das classes médias na Europa e nos Estados Unidos é um fenómeno efectivo. Tudo isto mostra que a governação do mundo não vai ser tão linear como se podia pensar. Quando o Presidente Bush desrespeitou a ONU, dizendo que não precisava dela, teve que arrepiar caminho, porque se meteu num grande sarilho. Quando se meteu na chamada “guerra” contra o terrorismo, invade o Iraque, tem como resultado o quê? Transformou o Iraque, o Afeganistão e o Médio Oriente num campo de treino de terroristas, que actuam à escala mundial. Foi isso que ele conseguiu. Por isso é que ele teve que vir pedir desculpa ao Kofy Annan, secretário-geral da ONU, que ele tinha tratado como um criado. Agora já são precisas tropas internacionais para mandar para o Iraque. Bush teve que fazer o mesmo com o Papa, que também denunciou a invasão. E até junto de Jacques Chirac…
Homem Magazine – O movimento anti-globalização, ou por uma globalização alternativa parece uma coligação negativa de interesses, de ex-comunistas e ex-extremistas, contra os Estados Unidos.
Mário Soares – Mas não é. O grande lema deste movimento é “Um mundo diferente, melhor e mais justo, é possível”.
Homem Magazine – Com valores democráticos e de sociedades abertas?
Mário Soares – Exactamente. Defendendo os regimes democráticos, as sociedades abertas e, muito importante, a renúncia à violência. A cidadania global, para se poder manifestar tem que ser não-violenta, o que significa a retoma das teses de Gandhi. O fenómeno Gandhi só foi possível porque ele estava a lutar contra um Império britânico que era liberal. Se fosse uma ditadura, tinha morto o Gandhi. A Alemanha de Hitler te-lo-ia eliminado rapidamente. Também agora é assim: o movimento anti-globalização só consegue existir porque estamos numa sociedade (ainda) liberal. Apesar de tudo,regulada pelas liberdades que existem, mesmo com todos os artifícios.
Homem Magazine – Tudo o que é mau para os Estados Unidos não é, necessariamente, bom para a Esquerda mundial.
Mário Soares – Não! Eu sou a favor da Esquerda dos Estados Unidos, sou pelo Partido Democrático. O meu adversário não é a América, nunca foi nem será. Nem sequer é o Partido Republicano. É a Administração Bush, os chamados “neo cons”, que são os que estão por detrás. O Henry Kissinger, um republicano, que encontro com frequência, tem uma concepção diferente. Até o Bush pai era diferente. Isto é outra coisa – uma mescla de neo-conservadores, do pior fanatismo de algumas seitas evangélicas e de algum judaísmo ortodoxo.
Homem Magazine – Como é que vê as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em Novembro?
Mário Soares – Se ganhar novamente Bush, será um desastre para o mundo.
Homem Magazine – E se ganhar John Kerry?
Mário Soares – Estou neste momento como aqueles americanos que usam um pin na lapela a dizer “Todos menos Bush”. Não conheço o Kerry, mas conheço a mulher dele. E acho que esta dupla Kerry-Edwards foi bem conseguida. O que tenho como garantia do Kerry é que ele não é do Texas, é da região de Bóston, a zona dos americanos mais refinados e mais cultos, mais “europeístas”, mais lançados para o internacionalismo. E isso é bom. Se ele ganhar, penso que vai haver uma grande vaga de fundo para o apoiar e que ele vai ter grandes hipóteses de modificar as coisas. Mas não é preciso sermos muito exigentes. Basta-nos que não seja Bush e que Kerry se coloque contra os “neo cons” e os fanáticos, como já o fez.
Homem Magazine – Mas o que é hoje ser de esquerda, como é que se pode governar à esquerda?
Mário Soares – Tenho um livro sobre isso, organizado pelo Sérgio Sousa Pinto, e que se chama exactamente “O que é hoje governar à esquerda”. Ali explica-se que governar à esquerda é no desistir das conquistas que a esquerda teve em todo o século XX, de assegurar o bem-estar para todos e criar as sociedades do bem-estar. Não tocar na Segurança e na Previdência Social. Respeitar as regras acordadas com os trabalhadores, não querer enriquecer à custa dos trabalhadores, nem serem só eles a pagarem os custos das reformas no sistema. Isso é que é ser de direita. Ser de esquerda é apostar na Democracia, na Liberdade, na Justiça Social. O que temos visto em Governos que se intitulam de esquerda? Estão a mimetizar o sistema neo-liberal americano actual. Na Europa, é possível governar à esquerda, não desistir do chamado Modelo Social Europeu. Veja-se o caso da Auto-Europa. Os responsáveis vieram a Portugal dizer que estão satisfeitos com a produtividade dos operários nacionais e que ficarão pelo menos mais 20 anos. E anunciaram que, parte dos lucros obtidos, reverterão a favor da formação dos trabalhadores, para eles serem cada vez mais conscientes das suas tarefas. A Auto-Europa exporta, representa quase 50 por cento das nossas exportações, e a paz social é exemplar. É por aí que as coisas devem marchar. Temos aqui um exemplo do que se pode fazer sem pôr em causa as regalias dos trabalhadores.
Homem Magazine – Mas não acha que a experiência de poder do seu amigo Lula da Silva, no Brasil, é a prova da impossibilidade de, hoje, se governar à esquerda?
Mário Soares – Não, não acho. O Lula ainda não fracassou. Tem tido alguma oposição da sua base de apoio, o que é normal. Ele fez promessas demasiadas – acabar com a fome, dar terra aos “sem terra”, e isso ainda não conseguiu. Mas tem mantido um rumo de política económica. É difícil avançar porque, hoje, as batalhas da esquerda têm que ser travadas em coordenação com o resto do sistema internacional.
Homem Magazine – O modelo clássico da social-democracia e da sociedade do bem-estar não está em perigo de ruptura, devido à baixa taxa de natalidade e à cada vez mais longa expectativa de vida?
Mário Soares – Isso é verdade, mas é um problema que tem que ser resolvido à escala mundial. A social-democracia é o único modelo exequível e pelo qual vale a pena lutar. A menos que se enverede por uma posição niilista e revolucionária, do tanto pior melhor, das revoltas do povo e dos escravos, dos que sabem que vão ser mortos, mas que se vingam… não é esse o caminho.
Homem Magazine – O que é que sentiu em relação a Donald Rumsfeld quando ele se referiu à Velha Europa? Essa é a sua Europa?
Mário Soares – A minha Europa é a que o Rumsfeld não quer. Trata-se de uma personagem fanática e falhada.
Homem Magazine – A democracia, tal como a conhecíamos até há poucos anos, está desvirtuada por várias formas de sensacionalismo e populismo, que se servem da televisão como instrumento privilegiado da manipulação da informação, como acontece na Itália. Em sua opinião, que democracia vamos ter no futuro?
Mário Soares – Uma democracia participada, social, que tenha como critério de crescimento, não os índices que os economistas prezam muito, mas o índice de saber se a população em concreto viu melhorado ou não o seu nível de vida. Não devemos aceitar esse caminho – errado – de proletarização da classe média e consolidar só as grandes fortunas. Isso será a explosão, não é suntentável como desenvolvimento. Ou promover o desequilíbrio ecológico, o tráfico de droga, de armas… É possível vencer a sida! Há meios para isso! Não os põem em prática, porque preferem empregar o dinheiro em armas, em submarinos, em mísseis, em vez de tratarem desse problema. É possível acabar com a pobreza no mundo! Não querem acabar com ela! Isso é uma questão moral! A Igreja católica percebeu isso, o Papa percebeu isso! Os católicos que batem com a mão no peito, mas que não têm sentido social, é que não… Quando o Papa condenou a intervenção no Iraque, antes, durante e depois da guerra, começaram a dizer que ele já estava um pouco velho…
Homem Magazine – Admira João Paulo II.
Mário Soares – Sim, não no sentido teológico, mas no sentido social, pois é um homem com a preocupação da justiça social. E é um pacifista.
O homem
Homem Magazine – Agora que deixou o Parlamento Europeu, que planos tem para o futuro imediato? Está a pensar avançar nas prometidas Memórias? Que novos projectos tem para a Fundação Mário Soares?
Mário Soares – A Fundação Mário Soares está a avançar muito bem. O arquivo enriquece-se todos os dias, é incontornável para se estudar a História contemporânea de Portugal e do espaço da Lusofonia. Tem tudo sobre Timor e muito sobre África – Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique. Temos aqui depositados todos os arquivos de Mário Pinto de Andrade, de Amílcar Cabral, de Ramos Horta, Xanana Gusmão…
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