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Acompanha o desenvolvimento tecnológico, sobretudo relacionado com as tecnologias do tempo.
Artigo que escrevemos para a INsmartwatch;
A relojoaria e a tecnologia
O relógio mecânico, invenção maior da Civilização, não tem autor(es) conhecido(s). Presume-se que terá começado a regular o Tempo nos mosteiros e conventos, transbordando daí o som das horas (batidas nos sinos, que não vistas, pois não tinham ainda mostradores) para as comunidades civis envolventes. O escape de folliot e o aproveitamento da gravidade como meio de fornecer energia a estes relógios são duas inovações técnicas fundamentais, a par dos sistemas de engrenagens (com rodas dentadas desmultiplicando velocidades), que depois foram sendo aplicadas noutros campos, para além da relojoaria. Nesses tempos de relojoaria grossa ou férrea, os relojoeiros eram também muitas vezes ferreiros ou armeiros, dominando as técnicas dos metais. Eram uma classe relativamente instruída, capaz de ler esquemas e fazer cálculos.
O poder religioso passou a ter um rival na marcação do Tempo colectivo quando, no final da Idade Média, na Europa, as cidades começaram a adquirir importância, governadas por poderes civis, políticos e comerciais. Os relógios dos municípios queriam ser melhores, mais sofisticados, mais certos, que os relógios das igrejas. O investimento num relógio público era avultado e exigia muitas vezes a contratação do relojoeiro e respectiva família, que passavam a viver perto dele, para lhe dar corda, para o “temperar”, literalmente, com azeite, artigo que entrava no seu salário anual. Alguns desses relojoeiros tinham conhecimentos astronómicos ou dialogavam com a comunidade científica da época, procurando que os relógios mais elaborados dessem indicação de fases de lua, marcassem o início das estações, dissessem o signo zodiacal, marcassem a equação do tempo… a sofisticação técnica atinge o auge no Renascimento.
A portabilidade do Tempo, com os relógios a conseguirem libertar-se do peso preso à corda, surge por volta de 1500, quando um tal Peter Henlein, na Floresta Negra, introduz a mola helicoidal como força motriz dos seus relógios (os chamados Ovos de Nuremberga). Este avanço tecnológico terá sido trazido da indústria de armamento, mas a mola helicoidal passa a ser o segundo avanço tecnológico mais importante da história da Relojoaria.
Com Galileu e as suas leis do pêndulo, o holandês Huygens aplica o princípio à relojoaria e dá-se o terceiro grande salto tecnológico – os relógios passam a ser muito mais exactos.
Costuma dizer-se que, entre 1750 e 1850, ocorreu o Século de Ouro da Relojoaria. O inglês John Harrison, com o seu cronómetro de marinha, consegue resolver o problema da Longitude no mar (o princípio é mais tarde usado na navegação aérea). Esta é uma das maiores proezas técnicas da História e foi um relojoeiro que a resolveu, usando a técnica de precisão a níveis nunca antes alcançados. Depois, miniaturiza-se – começam a aparecer os primeiros relógios de bolso. Essa miniaturização dos calibres exige ferramentas e máquinas-ferramentas mais precisas. A Relojoaria é a primeira actividade industrial a aplicar o princípio do fabrico em série. As peças passam a ser exactamente iguais, logo intermutáveis. Há grandes avanços nos metais usados, procurando-se resistências às variações de temperatura, aos campos magnéticos. Abraham-Louis Breguet inventa o turbilhão, pequeno dispositivo que anula os efeitos da gravidade no órgão regulador de um relógio, proeza técnica notável. As complicações – cronógrafos medindo até centésimos de segundo, calendários perpétuos, são proezas técnicas ainda hoje dificilmente ultrapassáveis.
A relojoaria usa por essa época rubis verdadeiros para assentar eixos e outras peças móveis, incentivando a procura de soluções sintéticas. As caixas querem-se o mais herméticas possíveis, para evitar a entrada de pó ou de água, e a relojoaria incentiva a procura de meios de estanquecidade. Os óleos usados em relojoaria têm que resistir ao desgaste, ao calor e ao frio, sem com isso fazer resistência aos movimentos das peças – isso incentivou a pesquisa de óleos naturais (como o de cachalote), depois sintéticos.
Em 1920, o suíço Charles Édouard Guillaume recebe o Prémio Nobel da Física. Em 1896 tinha inventado uma liga altamente resistente à deformação, o Invar, que passou a ser usado nas espirais dos relógios. Toda a instrumentação científica usa a cronometria, o salto permitido pelo Invar na medição do tempo foi gigantesco.
A relojoaria esteve na linha da frente na utilização do efeito piezoeléctrico (vibração de um cristal de quartzo, primeiro, de outros materiais como o césio, depois). Os relógios atómicos são dos instrumentos mais sofisticados e precisos alguma vez criados. O sistema de GPS, que localiza o nosso posicionamento através da triangulação de sinais de pelo menos quatro relógios atómicos, colocados em satélites, mantém os medidores de tempo na vanguarda da técnica.
Hoje em dia, a relojoaria emprega materiais amagnéticos nas caixas e nos órgãos reguladores (silício e cerâmicas compósitas, por exemplo), mas também aços hipoalérgicos e fibras de carbono – tudo o que é usado em tecnologia de ponta – desde a Fórmula 1 à cirurgia.
A comunicação sem fios, o armazenamento de dados, o diálogo entre relógios e dispositivos conectados, as funções de bem-estar e outras – todo um mundo novo se abre agora aos nossos olhos com os chamados smart watches. Mais uma vez, a Relojoaria está na ponta da investigação e do uso da tecnologia disponível. Será isso a morte da relojoaria mecânica? Apostaria que não – actualmente, um relógio mecânico é mais um objecto de desejo e sonho, contador de história e património, reflexo do que somos ou queremos que os outros vejam em nós. Também serve para ver o tempo, mas é muito mais do que isso.
O perene diálogo entre a Relojoaria e a Técnica é longo e rico, não cabendo todo nesta pequena nota. Mas ela serve de aperitivo para quem quiser aprofundar mais esta fascinante relação entre a capacidade do fazer e a sede eterna de materializar o Tempo.
Fernando Correia de Oliveira
Jornalista e investigador do Tempo
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