sábado, 20 de fevereiro de 2016

Tomar, os Templários e um relógio, na morte de Umberto Eco (1932 - 2016)


Esta obsessão por medir o tempo, esta ideia tão generalizada de calendarizar a existência são uma invenção moderna... Os povos da Antiguidade não tinham consciência do tempo.

Umberto Eco

“Se eu conseguia imaginar um castelo templário, assim era Tomar”, diz Umberto Eco no seu livro O Pêndulo de Foucault, cujo enredo gira à volta dos cavaleiros da Ordem do Templo e de um plano secreto à escala mundial que uns tantos iniciados têm feito por cumprir ao longo de seis séculos. O escritor recorda que Tomar era o Castelo em que os Templários portugueses se tinham entrincheirado “após a benevolência do rei e do papa os ter salvo do processo e da ruína”, transformando-os em Ordem dos Cavaleiros de Cristo.

“Sobe-se por uma estrada fortificada que bordeja os bastiões exteriores, de seteiras em forma de cruz, e respira-se uma atmosfera de cruzada desde o primeiro instante”.

Eco, que esteve em Tomar durante as investigações para escrever a obra, diz através de um dos seus personagens que se comoveu ao entrar na Charola, o templo octogonal que reproduz o do Santo Sepulcro, núcleo de todo o monumento e onde tudo começou. Depois, já em terreno ficcionado, fala de caixotes de volumes em hebraico, abandonados por ali, presumivelmente do século XVII. E conclui que o plano que dá corpo ao livro, seis encontros mágicos, terá tido início em Tomar, com o primeiro deles a ocorrer entre os cavaleiros e a comunidade judaica da localidade que, na verdade, foi muito importante. “Parti de Tomar e de Portugal com a mente em chamas”, diz a personagem.


A Ordem do Templo foi fundada em 1128. O seu objectivo era a reconquista do Templo de Jerusalém, entretanto caído nas mãos dos muçulmanos. Como corpo militar, ajudou na Reconquista ocorrida na Península Ibérica. Extinta em 1311, por pressão do rei de França, acusada de heresia e outras monstruosidades, diz-se que a verdadeira razão da perseguição foi o facto de o poder temporal europeu começar a temer o poder político e económico de uma ordem que não dava explicações a ninguém, nem sequer ao papa.

Em Portugal, D. Dinis conseguiu do papa João XXII uma bula muito conveniente: ela permitia a transformação da Ordem do Templo em Ordem de Cristo (1319). Na Alemanha, num processo idêntico, os templários transformaram-se em Cavaleiros Teutónicos. O estratega da Expansão portuguesa, o Infante D. Henrique, foi mestre da Ordem de Cristo desde 1417 e até à sua morte, tendo vivido provavelmente uma parte significativa da sua vida em Tomar (antes de se mudar para a zona de Sagres e, a partir daí, dirigir directamente as expedições marítimas do século XV português).

Segundo a lenda, a charola de Tomar terá sido construída no final do século XII pelo mestre da Ordem dos Templários, Gualdim Pais. Ao corpo principal foram sendo acrescentados outros edifícios. D. Manuel I foi durante 37 anos Mestre da Ordem de Cristo, residiu em Tomar durante vários períodos, celebrou lá o Capítulo de 1503, importante para a reforma da ordem. A chamada “Janela do Capítulo”, um dos mais célebres monumentos portugueses, é nesse peculiar estilo manuelino. D. João III foi o último Mestre particular da ordem, visitou o convento em 1523, mandou fazer obras de grande vulto, acrescentou mais espaço construído ao conjunto, decretou a reforma de 1529. Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal, faz-se reconhecer rei em Tomar, em Cortes celebradas em 1581, manda construir o célebre aqueduto. Filipe III de Espanha, segundo de Portugal, reúne o capítulo geral da Ordem de Cristo em 1619.

Há, no conjunto primitivo de Tomar, a partir da Charola, duas torres, que se apoiam uma à outra. Não se sabe ao certo quando terão sido construídas. Ambas são torres sineiras. Uma, pelo menos, terá sido também até há bem pouco tempo, torre relojoeira. No tempo da regente D. Catarina, viúva de D. João III, há uma autorização real para que “a torre dos sinos” seja reparada, já que existia o perigo de derrocada (Setembro de 1562). Mas não há referência a qualquer relógio.



Hoje, num canto da antiga farmácia do convento, que já sofreu intervenção museológica e tem uma exposição permanente de instrumentos, vasos e outro material usado pelos monges de Tomar para o tratamento das suas maleitas, jaz despido e triste o que resta de um mecanismo de relógio de torre, tirado nos anos 40 do século XX da torre onde tinha estado primitivamente. Nessa operação da então Direcção Geral dos Monumentos Nacionais também viria a ser picado e totalmente apagado da frontaria da torre o mostrador do dito relógio.

À primeira vista, o mecanismo teve várias intervenções. Feito essencialmente em ferro, tem peças comparativamente novas, em bronze e latão. Falta-lhe o oscilador tipo “folliot”, que terá sido substituído, a dada altura, por um escape tipo “âncora”. O pêndulo partiu-se, tendo também desaparecido.

Tomar teve durante alguns anos, no início do séc. XXI, Jorge Custódio, um especialista em arqueologia industrial que, como vimos, fez um trabalho exemplar na recuperação da relojoaria do ferro em Santarém. Ao ver o mecanismo de Tomar, sentiu a emoção típica de quem foi “mordido” pelo bichinho relojoeiro. Quis recuperar a máquina, dando-lhe um tratamento museológico adequado. Em 2004, percorremos, como ele, pela primeira vez, as torres sineiras do Convento de Cristo. Vimos onde o relógio esteve durante séculos, espreitámos pelos buracos de onde partiam as cordas do mecanismo, partilhámos com ele e com José Mota Tavares, outro entusiasta da relojoaria de torre, a alegria da “descoberta” dos pesos que terão servido para movimentar o conjunto. Soubemos da existência de “uns ponteiros” abandonados na arrecadação do convento.

Quem mandou construir o relógio templário de Tomar? Quem o construiu? Quem se encarregou da sua manutenção ao longo dos anos? E como fazer a recuperação da máquina? Poderá ela voltar à torre de onde saiu há 60 anos?

Alexandre Herculano, n’O Monge de Cister, fala a dada altura de um relógio de parede, referido à época de D. João I (séculos XIV-XV), salientando que essa invenção tinha apenas então começado a generalizar-se. Numa visão muito típica da escola romântica, Herculano afirma que esse relógio fora um presente do duque de Lencastre ao rei de Portugal, embora não haja quaisquer provas documentais para que isso se possa dizer.

Mas o caso não deixaria de ter a sua lógica, já que a relojoaria mecânica dá alguns dos seus primeiros passos em Inglaterra e o casamento de D. João I com Filipa de Lencastre, uma filha do duque João de Gant, inicia não só a dinastia de Avis como o processo de diálogo sistemático de Portugal com as fontes de conhecimento científico originárias do Centro e Norte da Europa. A relojoaria incluía-se nesse saber e, a partir de então, Portugal terá importado, por presente ou encomenda real, muitas máquinas da chamada “escola inglesa”.

A casa real portuguesa, em meados do século XVI, acarinhava como verdadeiros tesouros os relógios que ia encomendado ou lhe iam oferecendo. Por essa altura, mais precisamente em 1534, um tal Pêro de França, relojoeiro, residente em Figueiró, foi a Tomar, “para avaliar o relógio do convento, que ajudou a fazer Diogo Henriques, serralheiro”.

Este registo, citado por Sousa Viterbo no seu estudo Artes e Indústria Metálicas em Portugal, é um tanto enigmático, já que não garante que a máquina primitiva e que ainda hoje se encontra no Convento de Cristo seja a que os dois homens tenham feito. Eles poderiam estar a trabalhar sobre uma mais antiga, da chamada “escola inglesa” primitiva. À primeira vista, a máquina de Tomar parece-se com uma, datada de 1382, que se encontra na Catedral de Salisbúria. Também esta sofreu, a dada altura, a substituição do “folliot” pelo escape de âncora. Restaurada há alguns anos, foi-lhe devolvido o sistema primitivo. José Mota Tavares, que tem investigado a relojoaria férrea em Portugal, inclina-se para essa possibilidade.

Jorge Custódio, à altura da nossa visita director do Convento de Cristo, pensa que a máquina, tal como chegou até hoje, terá sido encomendada no tempo de ou pelo próprio D. João III que, aliás, foi grande benfeitor do conjunto arquitectónico tomarense.

Seguindo o levantamento feito por Sousa Viterbo, regista-se em 1570 um tal Simão Rodrigues, reposteiro na casa real, e que tinha a seu cargo o concertar o relógio da vila de Tomar, pelo que foi autorizada a respectiva Câmara a pagar-lhe anualmente, por essa tarefa, quatro alqueires de azeite.

No tempo de Filipe II, Manuel Pedro, relojoeiro em Tomar, recebe pelo trabalho de temperar o relógio o salário anual de três cruzados e quatro alqueires de azeite. Em 1653, um tal Martim Rodrigues aparece nos registos como sendo “relojoeiro da vila de Tomar há 24 anos”. É-lhe concedida autorização de, por morte, passar a licença do mister para um filho. Tal veio a ocorrer em 1656, com Francisco de Azevedo a substituir-se ao pai como “relojoeiro do convento”.

Em 1711, Maria do Espírito Santo, viúva de Francisco Nunes de Azevedo, apresentava ao rei D. João V uma petição — achava-se com seis filhos, não tinha mais para os sustentar que o ordenado de relojoeiro de Tomar, cargo que o marido exercera durante 11 ou 12 anos, tendo servido antes dele seu pai, Tomé Nunes. Pedia “a propriedade do ofício”. O rei acedeu, até que o filho mais velho atingisse a idade de ele próprio poder ser relojoeiro.

Pelo atrás exposto se depreende que os levantamentos até agora feitos pouco ou nada descobriram sobre a máquina propriamente dita do relógio do Convento de Cristo de Tomar. Ela está hoje, como já foi dito, arrumada a um canto da Farmácia do convento.

Jorge Custódio, aproveitando o tema emblemático do Pêndulo de Foucault, tratado na obra homónima de Humberto Eco, pretendia lançar um projecto — “O Eco e o Pêndulo do Tempo”. Com isso, visava estruturar uma unidade de investigação, inventário, salvaguarda e conservação do património relojoeiro do Estado, tendo como ponto de partida a “máquina de relógio” do Convento de Cristo.

Por outras palavras, estudar e recuperar o exemplo de relojoaria férrea de Tomar para, sistematizando processos em bases científicas, aplicá-los depois um pouco por todo o país. Onde o abandono desse património é gritante.

Jorge Custódio já não é o director do Convento de Cristo, pensamos que o seu projecto de recuperação do relógio ali guardado nunca chegou a ter consequências. De qualquer forma, a pista da semana é o Convento de Cristo, mais o seu acervo, incluindo o relógio que ali jaz.

Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)

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