domingo, 21 de dezembro de 2014
Anuário Relógios & Canetas 2015 - Grande Entrevista - Walter von Känel, Presidente da Longines
Já se encontra em banca a edição 2015 do Anuário Relógios & Canetas. A Grande Entrevista é com o Presidente da Longines, Walter von Känel.
Grande entrevista
Walter von Känel, Presidente da Longines
Eterno General
Fernando Correia de Oliveira, em Saint-Imier
É um dos patriarcas da indústria relojoeira suíça. O fim das empresas familiares, a concentração industrial, a crise do quartzo, a recuperação do mecânico, o boom asiático, por tudo passou a Longines, com Walter von Känel à frente de “tropas” fiéis, batendo-se pela velha dama elegante de Saint-Imier.
“Mostra-me o que trazes no pulso”. Foi assim que a conversa começou, numa tarde soalheira de fim de Verão, em Sait-Imier, no gabinete do Presidente. “Ah… é um 990, o calibre mais fino que fabricávamos na altura, com três ponteiros e data. Tinha 2,95 mm de espessura e mantivemos a produção entre 1973 e 1976. Depois, ele foi parar à Nouvelle Lémania”. Walter von Känel é uma enciclopédia ambulante.
“Encontrei-o numa loja de província, há uns cinco anos”, expliquei. “Ainda tinha a etiqueta original com o preço em escudos. Estava esquecido na loja há mais de 30 anos. Dei-lhe corda e começou logo a trabalhar. E, até hoje, não precisou de ser limpo ou de mudar os óleos”.
“O quê?” - Dispara o Presidente da Longines, subindo as suas já lendárias sobrancelhas. “Mas isso é a nossa ruína!” - Atira, juntando-lhe duas ou três das suas também proverbiais gargalhadas.
Falemos então com alguém que está há 52 anos no sector e há 46 na empresa, 37 deles na sua Direcção.
Anuário Relógios & Canetas - Em mais de meio século, assistiu aos movimentos de concentração industrial dos anos 1960 e 1960, à crise do quartzo, ao renascimento do relógio mecânico, à abertura de novos e gigantescos mercados. E Recorde-nos um pouco essas etapas.
Walter von Känel – Em todo este período, terão havido três fases quanto ao regime de propriedade. Quando cheguei à Longines, viviam-se os últimos anos da empresa familiar. Depois, o capital foi sendo vendido primeiro à Ébauches SA, que por sua vez foi adquirida pela ASUAG. Isto até à venda total à ASUAG, através da sua sociedade General Watch. Tinha começado a concentração no sector, porque as empresas familiares estavam descapitalizadas e os seus membros não quiseram ou puderam acorrer a novos aumentos de capital. Em 1983 e 1984, passámos a fazer parte da SMH, que resultou da fusão da ASUAG com a SSIH (Omega e Tissot). Estive na génese da SMH, que daria mais tarde lugar ao Swatch Group, de que hoje fazemos parte. A minha mulher trabalhou na Longines entre 1961 e 1971, como telefonista, foi ela que me disse que havia uma vaga para o departamento comercial, e eu concorri.
A nova estratégia da SMH foi a de racionalizar a base de produção, dividindo os fabricantes de calibres, mostradores, caixas e outros componentes, por um lado; as marcas, com a sua identidade, mais viradas para o investimento em imagem, por outro. Também passou a haver um sistema comum de distribuição para o mundo, em contacto com as redes de representantes locais. A Longines, que até então era um manufactura, deixou de fabricar movimentos. Ao princípio, não entendi bem a estratégia do “pai” Hayeck (Nicolas Hayek – 1928 – 2010 – o homem que liderou a reestruturação do sector relojoeiro suíço, afectado pelos relógios de quartzo japoneses), mas depois passaria a dar-lhe razão.
Numa segunda fase, foram criadas sucursais Swatch Group a nível regional, passando a ser elas a controlar também directamente a distribuição. [Portugal é uma das raras excepções na Euiropa, com as marcas do Swatch Group a serem importadas por um agente local, a Tempus Distribuição].
Estas foram as mudanças quanto à estrutura. Depois, há toda a questão do quartzo. Antes do aparecimento dos relógios de quartzo, o sector era dominado pelos técnicos. O lema era ‘a técnica comanda, e o mercado segue-a’. Depois, com a revolução do quartzo, a realidade passou a ser bem diferente – ‘o mercado comanda, a técnica segue-o’. O público queria relógios mais baratos mas, ao mesmo tempo, mais exactos.
Os relógios mecânicos de pulso foram durante muitas décadas de carga manual, sendo umam minoria os automáticos, que só começaram a ser populares a partir de meados dos anos 1950. O cronógrafo automático tinha acabado de aparecer, em 1969, quando surgem os primeiros relógios de quartzo, primeiro com leitura por LED, e depois com LCD. O tempo passou a ter uma leitura digital, apareceram as pilhas na indústria, uma realidade completamente nova. Nós, na Longines, acompanhámos relativamente bem o desenvolvimento do quartzo, fazíamos os nossos próprios calibres. No final dos anos 1970, quando regressei de uma viagem ao Japão, insisti na criação dos chamados calibres vhp (very high precision), chegámos a ter um calendário perpétuo equipado com calibre vhp. Mas, como já referi, no início dos anos 1980m deixámos de fabricar os nossos próprios movimentos, dentro da estratégia do grupo a que pertencíamos.
Anuário - Como avalia, para o sector, o aparecimento de novos mercados, como o chinês ou o russo?
Walter von Känel – Estive pela primeira vez no Extremo Oriente em 1971, visitei a China Continental, Hong Kong, Taiwan, Singapura. A Longines vende relógios para o mercado chinês desde 1887. O nome da marca sempre foi reconhecido nessa zona. Em 1971, negociei a distribuição para a China Continental com duas empresas estatais. Conto-te um episódio curioso – à chegada a Beijing, o funcionário da alfândega falou-me num dialecto suíço alemão. Ele tinha estado seis anos na embaixada da China em Berna. De notar que a Suíça foi o primeiro país ocidental a reconhecer diplomaticamente da República Popular da China. Duas vezes por ano, nessa época, Berna recebia delegações comerciais chinesas. Apesar de a China estar fechada ao mundo exterior, os relógios suíços sempre foram conhecidos por aquelas paragens. O Swatch Group instalou-se lá numa primeira fase apenas com serviços pós-venda, não podíamos vender. Na crise de 1988/1989, quando o país teve convulsões sociais, fizemos as nossas escolhas e permanecemos. Hoje, é mais fácil trabalharmos na China do que em França (risos).
A Longines vende relógios para o mercado russo desde 1872. Quando a economia se abriu, o nosso nome era também conhecido. A Índia é um caso especial – um autêntico io-io – mercado totalmente aberto, passou a totalmente fechado, funcionou por quotas, mas sempre com um elemento presente – impostos muito elevados, ao nível nacional, regional e local, chegando aos 60 a 80 por cento. No Brasil, o Swatch Group abriu uma das suas primeiras sucursais, acompanhamos a fase de crescimento e liberalização do mercado desde o início.
Anuário – O mercado chinês arrefeceu nos últimos dois anos e há muitas marcas que se ressentiram disso. Como foi com a Longines?
Walter von Känel – Desde logo, devemos admitir que as taxas de crescimento da economia chinesa não vão voltar ao que foram, isso parece-nos impossível. Mas a China, para a Longines, não é apenas o continente chinês. É também Macau, Hong Kong, Taiwan, os milhões de turistas chineses, os milhões de expatriados e emigrantes chineses. Depois, a campanha anti-corrupção que o governo lançou, reprimindo os presentes, atinge muito mais relógios de preços elevados e não tanto os nossos. O investimento que fazemos na China, em Beijing, Shanghai ou Guangzhou, recuperamo-lo em Lucerna, em Berna, em Paris ou Londres… Continuamos a crescer no mundo chinês ao nível dos dois dígitos. Há pouco tempo, foram abolidos os vistos entre a China e a Coreia do Sul. Milhares de turistas chineses chegam todos os dias a Seul, e nós estamos lá para lhes vender Longines…
Anuário - O grande tema do momento é o Apple Watch. O que tem a dizer sobre isso?
Walter von Känel – (um tanto irritado) Não tenho nada a dizer. Aqui, na família [Swatch Group] quem fala desse tema é o Nik Hayek Jr e o François Thiébaud [respectivamente CEO do Swatch Group e Presidente da Tissot]. Mas sempre te digo que relógios Apple Watch são coisas diferentes. Analisamos todos os dias a concorrência, não é a primeira vez que defrontamos uma ameaça deste tipo.
Anuário - Qual o posicionamento da Longines no seio do Swatch Group?
Walter von Känel – Preço, inovação, cada vez mais calibre de manufactura. Somos a segunda marca do Swatch Group em termos de volume de negócios e a quarta suíça, uma das raras que realiza mais de mil milhões de francos suíços em vendas consolidadas. Produzimos 7 mil relógios por dia. A nossa missão é clara – não mudou desde que o “pai” Hayek ma definiu, há décadas, e eu compreendi e segui como bom mmilitar – devemos ser o primeiro entre 800 e 3 mil francos – estamos com um pvp médio entre 1.800 e 2.100. O 2big brother” [Omega] está com um preço médio um pouci acima dos 5 mil francos. O “little brother” [Tissot], com preço médio entre 400 e 500 francos. Estamos confortáveis onde estamos. Temos um pouco mais de 50 por cento das vendas em relógios femininos, uma excepção no sector.
Em 1994 e 1995 procedemos a uma reavaliação geral interna, lançando um vasto estudo de mercado, para saber qual a percepção que havia da Longines. Tradicional, suíço, bonito, elegante, com estilo, uma das melhores relações qualidade / preço foram algumas das conclusões. Reforçámos essa percepção com o lançamento da linha Dolce Vita, que teve como primeiros embaixadores Audrey Hepburn e Humphrey Bogart. Foi marcante. Nos patrocínios, focámo-nos nos desportos elegantes – ginástica, hipismo, esqui. E, claro, Roland Garros, que é mais do que um evento de ténis, antes um acontecimento social.
Anuário - Do ponto de vista dos calibres, têm encomendado vários nos últimos anos à ETA (empresa do Swatch Group). Explique-nos essa estratégia.
Walter von Känel – A decisão de deixar de fabricar calibres foi tomada em 1984, para se efectivar em 1988. A 3 de Fevereiro de 1988, lembro-me bem, dirigi-me a todos os trabalhadores, anunciando o fim de uma era e o começo de outra. Mas dizendo-lhes que todos seriam necessários. Não houe despedimento, o que foi, desde logo, uma vitória. Expliquei-lhes que, prescindindo da base industria a favor da ETA, passaríamos a ter mais orçamento para comunicação e marketing, para tornar a marca mais conhecida. Para melhorar o desenvolvimento e o design de novos modelos. E melhorando a competitividade, com preços razoáveis.
Em 2004, iniciámos uma nova fase de cooperação com a ETA. Eu próprio desenhei o modelo quádruplo retrógrado, iniciámos o desenvolvimento do calibre novo e exclusivo, na base de um já existente, o Valgranges. Foi um êxito imediato.
Numa segunda fase, e considerando o nosso grande passado em termos de cronógrafos, encomendámos à ETA um cronógrafo de roda de colunas, desta vez baseado no Valjoux 7750, que não tem roda de colunas. Seguiu-se o desenvolvimento do cronógrafo de roda de colunas mono-botão. E, actualmente, estamos a lançar no mercado, sem grande alarido, um calibre novo, com base num outro que estava meio esquecido na ETA, e que vai passar a equipar os nossos relógios femininos.
Com esta estratégia estamos a respeitar as regras de concorrência impostas pelo COMCO (autoridade suíça da concorrência), pois temos calibres exclusivos, para os quais pagámos o desenvolvimento, a cadeia de montagem, e que não podem ser fornecidos a terceiros, não entrando para as percentagens estabelecidas de fornecimento obrigatório fora do Swatch Group. Garantimos o futuro.
Há 45 anos na Longines
Há uns 20 anos, a primeira vez que nos encontrámos com Walter von Känel, ao saber que vínhamos de Portugal, o já então Presidente da Longines disparou: “Mes hommages au Géneéral Spínola!”. Anos antes, um grupo do Exército português tinha observado exercícios do Exército suíço. Em retribuição, convidaram von Känel, coronel nas Forças Armadas helvéticas, a visitar Portugal, onde privou com o “homem do monóculo”. Nunca mais se esqueceu da figura.
Atirador exímio, coleccionador de armas antigas, historiador dos batalhões da sua região, Walter von Känel, antigo Comandante de um Regimento de Infantaria, está empenhado na criação de um museu dedicado ao papel das forças armadas da sua zona, desde os tempos dos grupos de mercenários, corpos exportados pela Suíça um pouco por toda a Europa, como tropas de elite.
Por questões acidentais e familiares, Walter von Känel nasceu em 1941, em plena Guerra Mundial, em Schwerin, Alemanha, do outro lado da fronteira, onde os pais, agricultores suíços, tinham arrendado terrenos. Casado, com dois filhos (a rapariga trabalha também na Longines), fez os estudos liceais já na Suíça, mais propriamente em La Chaux-de-Fonds.
No início da década de 1960, começa a trabalhar na Alfândega suíça e, de 1963 a 1969 toma pela primeira vez contacto com o mundo da relojoaria, empregado no fabricante de mostradores Jean Singer Ltd., de La Chaux-de-Fonds.
Recém-casado, a mulher, à altura telefonista na Longines, diz-lhe que tinha aberto uma vaga de vendedor na empresa de Saint-Imier. Walter von Känel entra em 1969 na Longines Watch Co. Francillon Ltd, ainda a empresa não fazia parte do Swatch Group. No departamento de vendas, e depois de uma passagem pela sucursal nos Estados Unidos, vai subindo até ser Director. E, em 1988, ascende ao cargo de Director-Geral da empresa.
Com a aquisição da Longines pelo Swatch Group, em 1991, von Känel mantém a Presidência e passa a fazer parte do grupo de gestão alargada do grupo, sob a liderança de Nicolas G. Hayek. Os dois homens cimentarão, a partir daí, uma forte relação de cumplicidade.
Para além da sua vida empresarial e militar, Walter von Känel está desde há décadas envolvido na política local e regional, sendo membro do Conselho0 do Jura Bernois. Um dos mais antigos quadros da indústria relojoeira mundial não quer ouvir falar em reforma. Mas percebe-se que, em privado, começa a pensar no assunto e a preparar uma transição suave na Longines.
“A relojoaria sempre me fascinou”, costuma dizer, recordando os seus tempos de infância e juventude, a partir de 1945, quando a família volta à Suíça e se instala no cume do Vale de Saint-Imier, no Jura Bernois, coração da indústria relojoeira helvética. ”Quando era miúdo, a grande empresa Longines, na encosta de Sait-Imier, onde a maior parte das pessoas da região trabalhava, sempre me impressionou, e estava convencido de que, um dia, iria trabalhar lá. Já nessa altura, a relojoaria era a força dinamizadora da nossa região, e seu sabia que ela me iria proporcionar o descobrir o mundo”.
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