sexta-feira, 2 de maio de 2014
Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"
Leituras acidentais de um ocidental. Terceira crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Maio de 2004.
Fernando Correia de Oliveira
Europeu e laico, por um bom combate
Era 13 de Maio de 2000, faz portanto agora exactamente quatro anos. O papa acabara de fazer anunciar, urbi et orbi, a sua interpretação da terceira parte do Segredo de Fátima, baseado no que os videntes Jacinto, Francisca e Lúcia tinham antecipado em 1917 e que a única sobrevivente passou a papel em 1944, para ser visto apenas por muito poucos.
Tanto se tinha especulado sobre esse texto... Afinal, segundo João Paulo II, ele apenas previra o atentado de que o papa foi alvo, num outro 13 de Maio, de 1981, em Roma.
Num dos refeitórios de um dos seminários do Santuário o ambiente era agora mais distendido, com padres e leigos convivendo, almoçando já tarde. O tema era a Irmã Lúcia, que saíra mais uma vez da clausura do Carmelo de Coimbra para estar com João Paulo II na cerimónia de beatificação dos seus primos.
Uma alta fonte da Igreja, com acesso directo e relativamente frequente a Lúcia, instado a pronunciar-se sobre o dia-a-dia da religiosa, adianta alguns pormenores, em voz baixa, que desde logo chamam a atenção dos restantes comensais. Para já, a única sobrevivente do grupo continua a ter visões quase diariamente, embora a Igreja não queira falar muito disso. Continuará assim, segundo parece, a ser um canal directo de comunicação com Deus. Depois, recebe cartas de todas as partes do mundo, com pedidos de cura, de conselhos, de agradecimento por uma graça concedida. A todas o Carmelo responde. (Lúcia, até pela idade, seria impossível fazê-lo).
O silêncio na mesa já era grande, mas todos inclinaram instintivamente ainda mais as cabeças para a cabeceira, quando essa fonte da Igreja, que por motivos óbvios não queremos identificar, lançou esta frase: “Agora que o Segredo está totalmente revelado, talvez a Irmã Lúcia tenha um pouco mais de descanso. É que ainda há um mês esteve no Carmelo uma delegação de bispos italianos, para falar com ela. Eu estive nessa sessão e, mais uma vez a pergunta foi – será que o Segredo é a reislamização da Europa?”.
Não admira que os bispos italianos estivessem (estejam) preocupados. A laicização do continente, mesmo no seu flanco sul, tem feito com que as presenças nas missas sejam cada vez mais raras, que os casamentos católicos sejam cada vez menos, que os baptismos sejam apenas formais, não levando a uma prática religiosa quotidiana.
Laicização? Enquanto as igrejas de Milão e Turim, mas também de Paris e Grenoble, ou de Bruxelas, Sevilha, Granada e, porque não, Lisboa, estão a maior parte do tempo vazias, as mesquitas (cada vez em maior número) estão cheias, não conseguem fazer caber no seu interior os fiéis, que se ajoelham no meio das ruas e praças da Velha Europa, orando em direcção a Meca, nos bairros onde habitam, ilhas de islamismo no coração do Ocidente, praticantes da segunda maior religião, já com 13 milhões de crentes.
Segundo a maioria dos sábios da escola shafi (uma das quatro escolas de jurisprudência do Islão sunita), os territórios que estiveram um dia sob o domínio do Islão, como o Al Andalus (onde se pode incluir obviamente Portugal), são considerados ainda terras do Islão, e estão sob a sua tutela. Há mais de 600 mil seguidores de Maomé em Espanha, uma comunidade exactamente de maioria sunita, e que cresce todos os dias, alimentada pela vaga maciça de imigração ilegal vinda do norte de África.
Em França, dez por cento da população é de origem magrebina e a tentativa do Governo de integrar a nação muçulmana no main stream, através de eleições democráticas, deu uma repetição do que se passou há anos na Argélia – ganharam os fundamentalistas, que agora dominam a representação dessa comunidade, como parceiro social, para desespero dos políticos.
Em Itália, onde apenas 5 por cento da crescente comunidade islâmica frequente a mesquita, assistiu-se mesmo assim a uma explosão de construção de templos – 214 na actualidade, por influência de correntes radicais.
A Alemanha tem 3,2 milhões de muçulmanos, dos quais 2,5 milhões são turcos ou originários da Turquia, na sua maioria sunitas ligados à doutrina halafi, a mais liberal das escolas jurídicas islâmicas. O islamismo turco é o que menos preocupa as autoridades, mas há imãs radicais, pregando a jihad, e o atentado de 11 de Setembro nos Estados Unidos foi preparado pela chamada célula de Hamburgo.
Em Inglaterra, os muçulmanos representam 3 por cento da população, vindos quase sempre do antigo império e dos mais integrados, pois começaram a emigrar logo a seguir à II Guerra Mundial. Há 600 mesquitas no Reino Unido, a maioria do ramo sunita. Mesmo assim, segundo sondagens oficiais, 13 por cento dos muçulmanos na Grã-Bretanha apoiam as acções da Al-Qaeda...
No seu todo, a Europa tem hoje 30 milhões de muçulmanos, para 300 milhões de habitantes. “Dez por cento não é uma identidade, é um acréscimo e eu espero, em todo o caso, que esses muçulmanos, um dia, se tornem europeus de pleno direito, plenamente integrados”, afirma Antoine Basbous, Director do Observatório dos Países Árabes em França (1). Mas este politólogo acrescenta: “O islamismo tem por vocação fazer aderir os muçulmanos aos seus próprios valores, de transformar o muçulmano num islamista, mobilizá-lo para a causa. Na sua doutrina e literatura, pede-se aos muçulmanos que vivem na Europa que preservem o seu apego à religião, que não convivam com os europeus. A política dos islamistas é transformar a comunidade muçulmana no Ocidente numa espécie de soldados, desligando-os da sociedade em que vivem”. Basbous vê, claramente, um fenómeno de reislamização na Europa.
A questão principal, por muito que custe aos adeptos do “politicamente correcto”, está na vontade expressa dos muçulmanos em não quererem integrar-se nas sociedades de acolhimento, e não na incapacidade destas em fomentarem essa integração. A realidade é que o Estado laico não se quer meter com a religião, mas o Islão quer meter-se com o Estado laico, que a tanto custo foi conquistado pelo Ocidente.
No rescaldo da jihad às portas de Portugal, no Al Andalus madrileno, Fouad Ajami, Professor na Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, dizia (2): “A geografia do islão – e da imaginação islâmica – mudou nos últimos anos. A fé tornou-se portátil, os muçulmanos que deixaram os seus países trouxeram o Islão com eles. Os homens vieram para as terras dos infiéis, mas uma nova geração de islamitas radicalizou ali a fé, no meio dos kafir (os infiéis)”. Este académico vaticina: “Seja qual for a arquitectura política que a Europa procura, terá de ser construída em proximidade com o outro mundo, frente ao estreito de Gibraltar e numa fase de crise terminal. Não há perspectiva de os governantes de terras árabes oferecerem ao seu povo um contrato social decente, ou as oportunidades de liberdade. É um triste facto que os povos árabes já não fazem reivindicações aos seus chefes. Em vez disso, terroristas como os de Madrid agora procuram satisfação quase só em terra estrangeira”.
Robert Kagan, do Carnegie Endowment for International Peace, faz a seguinte leitura (3): “A Al-Qaeda tenta dividir a Europa e os Estados Unidos não só no Iraque, mas na sua luta global. Tenta convencer os europeus não só de que o uso da força no Iraque foi errado, mas que o uso da força contra o terrorismo em geral é fútil”.
Já Paolo Flores d’Arcais, filósofo italiano, um dos “pensadores de serviço” para a Europa, fala do seguinte modo do terramoto político espanhol, na sequência do 11 de Março (4): “A esperança que vem de Espanha é uma esperança para todo o Ocidente. A esperança de que a derrota, depois de Aznar, toque também a Blair e a Berlusconi nas próximas eleições europeias. E a Bush em Novembro”.
No meio de um anti-americanismo crescente e nunca visto em todo o mundo (4) – nem nos tempos mais ácidos da Guerra do Vietname o sentimento negativo face ao poder do Tio Sam foi tão elevado – há muito boa gente que se sente hoje “entalada” entre um misto de cristianismo messiânico e capitalismo pouco ético vindo dos que rodeiam George Bush, por um lado, e um esquerdismo nostálgico, anti-democrático, anti-globalizante, por outro. O terrorismo islâmico parece querer empurrar-nos, à pressa, para um dos lados, numa chantagem insuportável.
1 – Actual, Expresso, 20 de Março de 2004
2 – The Wall Street Journal, 22 de Março de 2004
3 – Público, 18 de Março de 2004
4 – As sondagens mais recentes podem ser vistas em www.people-press.org
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