domingo, 2 de março de 2014

Há dez anos - início das crónicas "Leituras acidentais de um ocidental"


Em Março de 2004 iniciávamos uma crónica, "Leituras acidentais de um ocidental", na publicação mensal Homem Magazine. Como pensamos, hoje, exactamente o mesmo, sobre as mesmas coisas...

Leituras acidentais de um ocidental

Fernando Correia de Oliveira*

Definitivamente, estamos mergulhados na “nova desordem mundial”. E ninguém sabe muito bem quando ou se alguma vez se vai sair dela. “Passamos por um momento em que nada é previsível”, diz o guru norte-americano Tom Peters, que juntamente com Michael Porter e Peter Drucker constitui o triunvirato de pensadores económicos dominantes nos Estados Unidos e mesmo no Ocidente. No seu novo livro, Re-Imagine! – Business Excellence in a Disruptive Age (Reinvente – Excelência Empresarial numa Era de Turbulência), Peters detecta uma onda de caos que se apoderou das pessoas, das empresas, dos Governos, dos Estados. (1)

Diz ele: “Escolha uma área qualquer da vida, e o que se encontra é incerteza. Seja no que diz respeito à segurança nacional e à vida das empresas, seja no encaminhamento das carreiras individuais. Ninguém mais está seguro de nada. Esse ambiente encaixa-se nas definições técnicas e científicas das teorias sobre o caos. Hoje em dia, muitas ideias que foram sólidas como rocha para gerações e gerações desmancham-se no ar como fumo. Deixaram de existir fórmulas precisas de como conduzir com segurança a administração de uma empresa. As antigas regras foram jogadas pela janela. Não surgiram outras. O que se tem que fazer agora é ir avançando e refazê-las à medida que caminhamos”.

Se no tecido empresarial as coisas são assim, ao nível familiar e individual, não estarão melhor. “Actualmente, em 80 por cento das famílias norte-americanas pai e mãe trabalham fora. A estabilidade que permitia o sentar à mesa, ao jantar, para conversar em conjunto sobre a vida, simplesmente se evaporou”, diz Peters.

E quanto à relação entre Estados? Quando Samuel Huntington publicou no Verão de 1993 um célebre ensaio na revista Foreign Affairs, intitulado “O Choque de Civilizações”, preconizando o inevitável embate entre o Ocidente e o mundo islamizado, ninguém ainda sonhava com o 11 de Setembro. E esse terrível acontecimento pareceu dar-lhe razão. Mesmo que o Ocidente continuasse a pregar que nunca entraria numa guerra civilizacional, muito menos por motivos religiosos, o Islão faz ouvir cada vez mais as suas vozes radicais, no Afeganistão, no Iraque, na Indonésia, nas Filipinas, no Médio Oriente, elegendo esse Ocidente como inimigo a abater numa guerra santa. Mas Peters acha que as coisas são ainda mais graves do que parecem. “Hoje, o que se vive no mundo é uma situação muito mais instável do que a simples diferença cultural, religiosa ou de adaptação a novas tecnologias e modelos de gestão administrativa. O problema agora é mais profundo e abrangente. É a dificuldade de definir com clareza quais são as lealdades das pessoas, das empresas e das instituições”. Assim, além de inseguras, as pessoas sentem-se abandonadas, como se elas fossem a última preocupação dos governos e das empresas.

O conselho que Tom Peters dá é o de que “cada um se considere presidente da empresa de si próprio. Ou seja, gira a sua vida como um empresário que sabe que o ambiente pode mudar para pior a qualquer altura”. Salve-se quem puder?

Este neo-liberalismo levado à vida privada, não será a selva? A culpa de tudo isto não será a famigerada globalização, a visão do mundo como um mercado global, que se vai impondo a hábitos locais e até mesmo a religiões?

Para Jean-François Revel, não. Este mordaz jornalista e ensaísta francês, liberal profundo, ácido crítico das intervenções do Estado, sejam elas vindas de direita ou de esquerda, tem sido uma voz isolada no seu país quanto à defesa do papel dos Estados Unidos no mundo. E ousou dizer, por alturas do 11 de Setembro, do alto do seu estatuto e dos seus 80 anos, que não se estaria perante um choque de civilizações, mas da defesa da Civilização, que se vê atacada por pensamentos vindos de uma Idade Média que já se julgava ultrapassada. Pois para Revel, além do fundamentalismo islâmico cego de ódio ao Ocidente, “continuam a haver muitos crentes no socialismo, nas nacionalizações e no proteccionismo” (2). E esse sector da sociedade, “sem o comunismo, virou-se agora para a anti-globalização”. Mas a globalização será, segundo ele, a melhor forma de um Sul subdesenvolvido ascender finalmente à abundância e à sociedade de consumo.

As últimas décadas do século XX parecem querer dar-lhe razão, pelo menos nesse aspecto: os mega-Estados China e Índia aproveitaram bem a liberalização dos movimentos mundiais de capitais e mercadorias.

Tom Peters também avisa: “Globalmente, o foco de poder está a atravessar o Oceano Pacífico, em direcção à China e à Índia. Quando o potencial desses dois gigantes for totalmente exercido, vai mudar tudo de novo no mundo”.

Mas, por agora, quem manda no mundo são os Estados Unidos. É o tal mundo unipolar, saído da queda do Muro de Berlim e da implosão do Império Soviético, nos já tão longínquos tempos de 89 do século passado.

Na tal “nova desordem mundial” então criada, há quadros cada vez mais plausíveis de pandemias naturais ou artificialmente criadas; de terrorismo biológico, químico ou nuclear; de ataques maciços às redes cibernéticas, de que estão cada vez mais dependentes sistemas bancários, redes de electricidade, água, telecomunicações, sistemas de controlo aéreo, ministérios, Governos... O caos, mais uma vez, ao virar da esquina.

Mais rico, mais vulnerável. É assim que o Ocidente se sente. Mas o que é o Ocidente? Será que “O Ocidente” ainda existe? Esta pergunta serve de ponto de partida para Dominique Moisi, do Instituto Francês de Relações Internacionais, escrever um ensaio, “Reinventing the West” (3). Será que passámos de um mundo com duas Europas e um Ocidente para um com uma Europa e dois Ocidentes?

A reacção das opiniões públicas europeias à intervenção dos Estados Unidos no Iraque, como nunca se tinha visto em muitas décadas, apenas veio tornar palpável um estranho mas crescente sentimento anti-americano no Velho Continente, que ultrapassa muito mais do que a tradicional “esquerda”, que alinha com uma forte corrente à escala mundial, e coloca interrogações sobre se a aliança de um século entre os dois lados do Atlântico, consolidada por duas Guerras Mundiais e uma Guerra Fria ganhas em conjunto, não terá chegado ao fim.

Intelectuais europeus como o alemão Jurgen Habermas e o francês Jacques Derrida viram nas manifestações anti-guerra a emergência (finalmente, diríamos nós) de uma sociedade civil à escala europeia, que escolhe definir-se a si própria de forma negativa, contra os Estados Unidos. Já Jacques Delors, o último grande dirigente europeu, que liderou a União na década de 1985 a 1995, pensa mais pela positiva, na coesão económica e social entre europeus. “Estou convencido dos benefícios deste princípio, traduzidos no apego das populações à Europa. Se o negligenciarmos, a Europa não terá alma”. (4)

Esta nova Europa a 25 (algo de ingovernável, afiançam os mais cépticos, reforçados pela real falta de liderança continental, pelas suas divisões evidentes, pelo fracasso da chamada Constituição Europeia), neste mundo caótico, não precisará do chapéu-de-chuva protector dos Estados Unidos? Esse chapéu-de-chuva serviu muito bem na Guerra Fria, quem melhor do que os norte-americanos para continuarem a liderar a protecção de um Ocidente acossado? Sem política externa ou exército comum a 15, como conseguirá a Europa consegui-los a 25? A piada que corria em Washington há alguns anos – “A quem telefona o Presidente dos Estados Unidos, do lado de lá do Atlântico, em caso de crise?” – ganha nova força com a incógnita que constitui o alargamento da União. E, depois, num futuro próximo, a Turquia, será mais ocidental que europeia? E a Rússia, será mais europeia que ocidental? Onde começa e acaba o Ocidente?

Para Jacques Dellors, o desafio é claro: “Hoje, é de novo preciso gritar que a Europa tem uma escolha entre a marginalização e o declínio ou a sobrevivência. Porque o mundo anda depressa. No plano tecnológico, económico, das relações geopolíticas”.

Do outro lado da balança, recorda Dominique Moisi, e apesar da sua aparente decadência, a Europa continua a ser “a melhor protecção que os Estados Unidos podem ter contra os seus inimigos internos: o seu isolacionismo narcisista, a sua ignorância sobre a maneira como os outros sentem e pensam”.

1 – Veja, 17 de Dezembro de 2003
2 – El Pais, 1 de Fevereiro de 2004-02-11
3 – Foreign Affairs, Novembro/Dezembro 2003
4 – PÚBLICO, 4 de Fevereiro de 2004

*Jornalista e investigador, inicia neste número uma rubrica de comentário político internacional

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