Não vejo nem revejo as minhas contas por uma questão de preguiça. Dou-me tão mal com os
números que evito fazer contas e, normalmente, dou sempre como bom aquilo que me é apresentado. Não é por uma questão de confiança no resto do mundo, repito, é por preguiça. Que me
lembre fui vítima de dois roubos. Um homem da minha idade que contabiliza dois roubos na sua
vida creio que se pode dar por muito satisfeito.
O relógio foi assim: na morte de um tio meu quiseram que um relógio de ouro ficasse para mim
– era um desses relógios que se usavam no bolso do colete presos com uma corrente que saía do
bolso e atravessava a barriga com todo o esplendor. Este relógio para nós já não era cómodo e há
que convir que um relógio de pulso é muito mais barato e fácil de transportar.
Eu vivi uns tempos numa casa da Serra de Sintra num sítio a que chamavam A Tapada do Saldanha
porque diziam que ele tinha vivido lá. (Por sinal, o Vitorino
Nemésio, uma vez que me foi visitar, contou-me logo uma
história: que o Alexandre Herculano, ao escrever uma carta
a um amigo com quem estava em falta, começou assim:
“Eu estive para pedir uma cara emprestada ao Saldanha,
para lhe escrever esta carta”.) Essa casa de Sintra era uma
casa aberta: viviam lá alguns amigos meus e os amigos
dos amigos também iam por lá. O relógio estava como
ornamento em cima de uma cómoda e, um dia, o relógio
desapareceu. Felizmente que não sabia o valor do relógio
porque se soubesse ficaria se calhar a pensar nisso. Eu fiquei
aborrecido porque, em princípio, todos que lá viviam eram
gente de confiança mas os amigos que lá iam, pelos vistos,
não eram de confiar. O relógio desapareceu e eu, possivelmente, estive uns dias a pensar nisso mas depois passou-me.
O outro roubo foi para mim muito pior: eu tenho uma espécie de tara pelas memórias e confissões do Nelson Rodrigues. Tinha os livros todos dele mas um deles, A Cabra Vadia, estava esgotado
há muito e demoravam a fazer uma edição nova. Uma vez, no Rio de Janeiro, quando fui visitá-lo
fiz-lhe o pedido: se ele, por acaso, não tinha um exemplar desse livro que para mim era então
uma preciosidade. O Nelson foi lá dentro e traz a Cabra Vadia um bocado amachucada, com a capa
rasgada mas completo. Abriu a primeira página e escreveu assim: “Para o António Alçada Baptista,
meu irmão íntimo, com o afecto e a admiração do Nelson Rodrigues.”
Este livro foi logo promovido a preciosidade da minha biblioteca. Mostrei-o, de capa aberta,
a quem me visitava. Havia alguns que não escondiam a sua inveja porque, naquele tempo, havia
alguns para quem um livro e a amizade do Nelson eram uma coisa valiosa. Confesso que, naquela
altura, me lembrei do relógio de ouro mas não se comparava com a folha do livro do Nelson.
E pensei muito nisso: no desgosto que tinha com o desaparecimento da folha, enquanto o relógio
de ouro me deixara quase indiferente.
O valor das coisas não vem do que custam na praça mas tem mais que ver com a maneira como
estão ligadas ao nosso coração.
António Alçada Baptista
O Dr. António Alçada
ResponderEliminarem tudo aquilo que escreve,
mesmo que seja ao de leve,
gosta da prosa apurada,
pondo sempre um grão de sal
no refogado em geral!
JCN
Grão de sal
ResponderEliminarSe o poeta não puser
nas suas composições
um grão de sal, é fazer
intragáveis pastelões.
Para ter algum sabor
de sal precisa a comida:
para ter qualquer valor
o verso tem de ter vida.
Sem ter graça a poesia
por mais correcta que seja
é mera sensaboria.
Um certo humor, ao compô-lo,
é para o verso a cereja
que em cima se põe do bolo!
João de Castro Nunes