[...] Não sei o nome da localidade onde o facto se passou.
Lembra-me só que era no Outono, nessa quadra de melancolia, em que desmaia o azul nos céus, em que o verde das selvas empalidece e os ventos arrebatam em turbilhões rápidos, ao longo das avenidas, onde já rareiam as sombras, a folhagem seca, que crepita sob os pés do caminhante.
Corriam impetuosas nas levadas as águas que fertilizam os vales. A hora do crepúsculo fazia mais que nunca cismar. Com as primeiras nuvens do sul, numerosos bandos de andorinhas intimidadas atravessavam os ares, procurando climas, onde lhes sorrisse ainda a Primavera.
O sítio era ameno, próprio para se gozar dali esse belo espectáculo da natureza. Uma colina elevando-se graciosa do meio de uma amplíssima e vicejante bacia. No vale, que a cerca, tudo em mosaicos de verdura; prados extensos, veigas, devesas, choupais a banharem-se na água, arroios serpeando por entre a relva, espraiando-se além em pequenos lagos, despenhando-se ruidosos dos açudes, ora a esconderem- se por detrás de umbrosos cômoros, ora patentes na planície, a retratarem as rosas, as últimas borboletas errantes, as nuvens e o rosto alegre das lavadeiras.
Pela encosta entrelaçavam os ramos vigorosos carvalhos seculares, cujo tronco rugoso e carcomido revestiam as heras e os musgos; de espaço a espaço, cortava o caminho um desses gigantes derrubados, nutrindo dos restos já sem vida a vegetação nascente que lhe rompia do seio; os algares da corrente, ocultos por um denso tecido de fetos, de giestas e de tojos, denunciavam-se apenas pelo ruído da água, descendo no leito pedregoso; ouvia-se o rastejar do réptil, fugindo ao rumor das passadas, mas difícil seria igualmente percebê-lo entre as folhas soltas e crestadas que alastravam o chão.
Em cima, na planura onde conduziam os tortuosos caminhos que ladeavam a colina, erguia-se de entre a espessura dos álamos sussurrantes, uma pequena capela, que sustentando a cruz sobranceira às franças das mais elevadas árvores, parecia estender a todas as várzeas e povoados que dominava dali, a influência salutar e benéfica desse símbolo da redenção.
Quando, ao declinar da tarde, soavam do alto da torre lateral os toques da ave-maria, em todas as aldeias abrigadas junto à base da colina, nas mais pobres choupanas como nas mais fartas herdades do vale, nenhuma cabeça ficava por descobrir, nenhuns lábios deixavam de murmurar reverentes a saudação angélica; e se os ventos levavam o som harmonioso e plangente do pequeno sino até às longínquas cordilheiras de serras que, como indistintas massas azuladas limitavam circularmente aquele horizonte vastíssimo, os serranos, dispersos com os rebanhos pelos pascigos, ou encerrados nas choças colmadas das montanhas, volviam saudosos as vistas para o ponto branco de onde lhes chegavam aos ouvidos aqueles sons quase a esvaecerem-se, e recordavam- se suspirando da devota romaria que todos os anos os levava ali, junto do altar da milagrosa Senhora da Saúde, sob cuja invocação fora levantada a capela.
As romarias! as romarias! gratas recordações, únicas talvez, daquela pobre gente da serra! As horas rápidas de gozo, que um só desses dias de festa lhe dá, compensam-lhe de sobra as continuadas fadigas da vida tão trabalhada e penosa. Em torno à pequena ermida, onde cada ano afluem de tão longe essas piedosas peregrinações de devotos, parece esvoaçar de contínuo uma turba de espíritos alados que nos segredam histórias de tantos amores, nascidos ali e ali santificados, junto ao altar onde as dádivas votivas dos menos esperançados se amontoam, a velar pelo seu destino e propiciar-lhes o Céu. [...]
Júlio Dinis, in Serões da Província, Uma flor de entre o gelo
ResponderEliminarUm naco de boa prosa
a vez faz de poesia
quando tem categoria
e redacção primorosa!
JCN
Um naco de boa prosa
ResponderEliminara vez faz de poesia
quando tem categoria
e redacção primorosa!
JCN
Um naco de boa prosa
ResponderEliminara vez faz de poesia
quando tem categoria
e redacção primorosa!
JCN
Existe mais poesia
ResponderEliminarem certos trechos em prosa
que em muito verso, hoje em dia,
feito à lixa, lima ou grosa!
JCN