sábado, 20 de abril de 2013

Vento de Leste, Vento de Oeste - comunicação no Museu do Oriente


Comunicação no Museu do Oriente, Lisboa, 19.04.2013, no âmbito da Conferência 500 anos de Relações Luso-Chinesas

Vento de Leste, Vento de Oeste

Agradeço à Fundação Oriente, na pessoa do dr. João Amorim, o convite que me foi feito, a que acedi com todo o gosto.

Comecemos por uma citação do Presidente Mao Zedong. Uma frase proferida em Novembro de 1957, em Moscovo, onde Mao estava, no âmbito das comemorações do 40º aniversário da Revolução de Outubro: É minha opinião que a situação internacional chegou agora a um novo ponto de viragem. Há hoje dois ventos no mundo, o Vento de Oeste e o Vento de Leste. Há um ditado chinês – Ou o Vento de Leste prevalece sobre o vento de Oeste ou o Vento de Oeste prevalece sobre o vento de Leste. Acredito ser característica da situação actual que o Vento de Leste está a prevalecer sobre o Vento de Oeste. Ou seja, as forças do socialismo tornaram-se esmagadoramente superiores às forças do imperialismo.

Como se sabe, Mao não só exagerava a retórica como estava a errar no diagnóstico. Nas marés da História, a uma determinada altura, podemos sempre usar o ditado chinês e tentar perceber que vento prevalece sobre o Mundo – se o de Oeste, se o de Leste.

Há 15 anos, a Fundação Oriente e o jornal Público faziam uma edição conjunta de um trabalho meu – 500 Anos de Contactos Luso-Chineses. Ela foi fazendo o seu discreto percurso, foi traduzida para chinês.


Nestes 15 minutos da minha intervenção recordarei pontos que considero cruciais em meio milénio de contactos entre o pequeno país no extremo ocidental da massa euro-asiática e a potência gigante do extremo leste.

Acima de tudo, suscitarei interrogações, que agora como então se me colocavam. E acrescentarei uma tantas novas, que entretanto se me foram apresentando.

Desde logo, a questão dos ventos. O livro, produzido um ano antes da transferência de poderes em Macau, começava dizendo que, a 20 de Dezembro de 1999, as Berlengas passariam de novo à soberania portuguesa, depois de este minúsculo arquipélago ter sido ocupado durante 565 anos pela China. E acrescentava – tratava-se da última colónia asiática que restava na Europa, terminando assim um ciclo de expansão das potências orientais, iniciada nos primeiros anos do século XV.

As coisas não se passaram assim, mas podiam perfeitamente ter-se passado. O que levou a que fosse o Ocidente a carregar os ventos dominantes da humanidade, de há meio milénio até hoje, e a partir de um pobre e despovoado território chamado Portugal? Porque não terá sido a China, já então o país mais populoso do mundo e, na altura, o mais avançado social e politicamente, a liderar o processo de globalização, dado que tinha os meios técnicos e humanos ao seu alcance para o fazer?

Isso faz-nos pensar nas chamadas Quatro Grandes Invenções – bússola, pólvora, papel e impressão. A civilização chinesa tem a paternidade desses quatro avanços tecnológicos. Mas foi o Ocidente que usou a bússola para chegar a Oriente. Foi o Ocidente que usou a pólvora nos canhões para conquistar o Oriente. Foi Gutemberg que iniciou a era da Comunicação.

Por outras palavras, a importância de uma descoberta não está na descoberta em si mesma, mas no impacto maior ou menor que ela provoca.

Todos aqui saberão, alguns mesmo muito mais do que eu, sobre as viagens do eunuco Zheng He, ao serviço do Imperador da China. Com as suas sete expedições – de 1405 a 1433 – o mais longe que terá chegado foi a costa do que é hoje o Quénia, a norte de Moçambique. Dezenas de navios gigantescos, tripulados por centenas ou milhares, em busca de Estados organizados que viessem a reconhecer a soberania da China. O chamado sistema de tributo e suserania. Mas sem ocupação. Sem preocupação de propagação de uma qualquer fé. As viagens de Zheng He terão terminado – quanto a mim porque, no percurso, se chegou a regiões onde deixava de haver Estados organizados, logo, deixava de fazer sentido continuar à procura de suseranos. A sua importância para as marés da História terá sido diminuta, apesar de algumas teorias recentes, pouco credíveis, quererem demonstrar o contrário.

Zheng He morreu em 1433, em Calicut, 65 anos antes da chegada de Vasco da Gama à cidade. A China tinha, na altura, a técnica, a população, para poder comandar a maré da História. Continuar as expedições marítimas, dobrar o Cabo, para Ocidente. Subir a costa de África. Chegar a portos europeus… e… Mas foi exactamente o contrário que se passou. O vento de Oeste ganhava ao vento de Leste.

Os primeiros contactos entre portugueses e chineses

Quando Diogo Lopes de Sequeira partiu à descoberta de Malaca, em 1508, a China já faz parte clara dos interesses da Coroa de Lisboa. Nas instruções que recebera do rei lia-se: “perguntareis pelos chins, de que parte vêm, e de quão longe, e de quanto em quanto vêm a Malaca, ou aos lugares em que tratam, e as mercadorias que trazem, e quantas naus deles vêm cada ano, e pelas feições de suas naus, e se tornam no ano em que vêm, e se têm feitores ou casas em Malaca, ou em outra alguma terra, e se são mercadores ricos, e se são homens fracos, se guerreiros, e se têm armas ou artilharia, e que vestidos trazem, e se são grandes homens de corpos, e de toda a outra informação deles, e se são cristãos, se gentios, ou se é grande terra a sua, e se têm mais de um rei entre eles, e se vivem entre eles mouros ou outra alguma gente que não viva na sua lei ou crença, e se não são cristãos em que crêem, ou a que adoram, e que costumes guardam, e para que parte se estende a sua terra, e com que confinam.”

Nessa viagem, poderá ter havido contactos anteriores com chineses, mas aquele que está documentado data de 1 de Julho de 1509 – Sequeira deparou-se com juncos chineses ancorados no porto de Malaca. Subiu a um deles, comeu a bordo. Descreveu os chineses e os seus hábitos. “Homens alvos e bem dispostos, sem barba, salvo no bebedoiro, olhos pequenos e os lacrimais afastados dos narizes, cabelos compridos, quase pretos e ralos, metidos em crespinas de seda pretas… mangas largas abaldocadas… dizem que são cristãos, comem toda a vianda, trazem consigo mulheres… comeu-se carne de galinha e porco, bebeu-se vinho branco de palma… os chins comiam com garfos, usavam guardanapos lavrados para se limpar.

Mulheres a bordo, carne de porco, bebidas alcoólicas… era definitivamente algo diferente do Islão.

Ao conquistar Malaca, em 1511, Portugal imiscuía-se directamente no sistema de tributo, vassalagem e suserania instituído pela China aos Estados vizinhos, já que a cidade-estado dele fazia parte.

Nos anos seguintes, os portugueses continuaram a avançar para Oriente, chegaram à costa da China, pelo delta do Rio da Pérola. Foram perseguidos, expulsos, proibidos. Cometeram actos de pirataria.

Data de 1554 o primeiro acordo de comércio entre os portugueses e as autoridades de Guangzhou. Um entendimento oficioso, oral. Em que os portugueses passavam por malaios e não por folangji, ou francos, o nome da única potência ocidental que estava nos anais das relações externas do Império do Meio.

Macau e Jesuítas

Em 1557 já existiria em Macau uma pequena colónia portuguesa, pagando “foro de chão”. Em 1560, a comunidade portuguesa já estava administrativamente organizada – capitão de terra, ouvidor e bispo. Em 1574, os chineses constroem aquilo que os portugueses passam a chamar de Portas do Cerco. Nela, a inscrição chinesa “Teme a nossa grandeza e respeita a nossa virtude”. Em 1582, já com Portugal governado por Filipe II, capitão de terra, ouvidor e bispo são convocados pelo Governador de Guangdons e Guangxi, para se esclarecer o estatuto de Macau. No final, o Governador terá dito: “Os estrangeiros sujeitos às leis do império podem continuar a habitar em Macau”. De salientar que, nesse encontro, entre os presentes oferecidos aos mandarins, os portugueses traziam relógios. Esta é uma das tecnologias ocidentais que ali chegaram por essa altura. Uma carta do Senado de Macau, esclarece, em 1637: “não estamos aqui em terra nossa, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da Índia onde somos senhores”.

Desde 1576 que havia a diocese de Macau, com jurisdição em toda a China, Japão, Coreia e ilhas adjacentes. Em 1583 é fundada a primeira missão jesuíta no continente, em Chaoching. Em 1628 já há jesuítas em Beijing. Em 1629, prevendo correctamente um eclipse solar, os jesuítas estabelecem-se na capital, não com o estatuto de padres, mas com o de mandarins, de especialistas astrólogos / astrónomos. No Observatório de Beijing funcionava o Tribunal das Matemáticas, de que alguns dos jesuítas chegaram a ser directores.

Em Portugal, recupera-se a independência em 1640. Na China, em 1644, muda-se de dinastia- caem os Ming, ascendem os Ching (manchus). Em Junho de 1670 chega a Beijing a embaixada de Manuel de Saldanha, iniciando-se um período de diplomacia clássica, de Estado a Estado, mas tendo sempre Macau como peso específico em tudo o que se tratava. Seguiram-se outras embaixadas, como as de Alexandre Metello de Sousa e Meneses ou de Francisco de Assis Pacheco de Sampaio. No tempo dos imperadores Kangxi, Yongzheng. Qianlong.

Os Tratados Desiguais

Em 1787, David Scott, negociante inglês, num memorando aos directores da britânica Companhia das Índias Orientais, defendia: “Os portugueses nada extraem de Macau; poderíamos comprar-lho; para nós seria uma aquisição capital.”

Data de 1839 a chamada Primeira Guerra do Ópio. A Inglaterra toma a posse de Hong Kong. O Tratado de Nanjing inicia a época daquilo que os chineses classificam de “tratados desiguais”.

O Visconde de Santarém, na Memória sobre o Estabelecimento dos Portugueses em Macau” (1842-1854), diria: “Não estamos de posse daquela cidade e território por direito de conquista, porque se assim fora não pagaria a dita cidade imposto territorial ao imperador”.

Só em 1860 a China passou a ter um Ministério dos Negócios Estrangeiros no sentido ocidental do termo.Com a II Guerra do Ópio, as potências ocidentais invadem Beijing, nesse mesmo ano. Portugal, aproveitando a onda, pressiona a China para um tratado, onde o estatuto de Macau seja clarificado, passando a ser território português. O Tratado de Tianjing, de 1862, nesse sentido, nunca viria a ser ratificado.. Data de 1887 o primeiro tratado Estado a Estado entre Portugal e a China. Esse novo Tratado de Tianjing reconhecia vo exercício da soberania portuguesa sobre o território, comprometendo-se Portugal a nunca o alinear sem acordo prévio chinês. Apenas em 1903 Portugal tem um embaixador permanente em Beijing.

Se, em 1910, Portugal derruba a monarquia, na China, em 1911, também nasce a República. Ambos os países vivem a instabilidade permanente.

Ditaduras e maoístas

Estranhamente, ou talvez não, as relações ou não-relações, entre Portugal e a China só viriam a assentar de novo em bases visíveis quando os comunistas ascenderam ao poder, em Beijing, em 1949, e o regime salazarista está então no seu auge. As duas ditaduras gerem inteligentemente interesses comuns, que passam por Macau. Mesmo sem que haja relações diplomáticas formais.

Chegou a haver várias tentativas de reconhecimento formal do regime comunista por parte de Lisboa, uma delas liderada secretamente por Jorge Jardim, mas todas se goraram.

Em 1971, Portugal vota a favor da admissão da China na ONU, em substituição da representação da Formosa. Embora apoiando os movimentos de libertação nas colónias portuguesas, a China consegue retirar Macau da lista de territórios a descolonizar, pois, segundo a sua posição, não se tratava de uma colónia mas de um território chinês que os Tratados Desiguais tinham colocado apenas temporariamente sob administração estrangeira.

Um capítulo ainda pouco estudado – a influência do maoismo no espectro político português. É nessa altura, e em Macau, que alguns militares portugueses tomam pela primeira vez contacto com o socialismo, lendo as vobras de Mao Zedong, que circulavam no território. Ramalho Eanes faz uma comissão em Macau, em 1962, como capitão. Arnaldo Matos, um seu miliciano na Guarnição Militar, seria anos depois fundador e secretário-geral do MRPP.

Tanto o MRPP como outros grupos marxistas-leninistas fundam, depois de 1974, associações de amizade Portugal-China. A propaganda desses grupos, sobretudo do MRPP, vai beber directamente à linguagem, ao grafismo fda propaganda chinesa. O vermelho e o amarelo, as figuras de perfil, inclinadas que povoam as paredes de Portugal no PREC parecem cenas da Revolução Cultural… A principal editora do MRPP chamar-se-á mesmo Vento de Leste…

Tempos de Vento de Leste

Portugal e China restabelecem relações em 1979. O primeiro diplomata português acreditado em Beijing é João de Deus Ramos. Em 1986 inicia-se o processo negocial para que a administração de Macau seja devolvida à China. A 20 de Dezembro de 1999, ocorre a transferência de administração e o território passa a gozar de um estatuto especial durante os 50 anos seguintes.

Ainda em 1979, Deng Xiaoping inicia a abertura da China ao exterior, criando zonas económicas especiais na região costeira, e onde uma espécie de capitalismo de estado é experimentado.

Dez anos depois, na Primavera de 1989, ocorrem manifestações populares vpor toda a China, contra a corrupção do regime e por uma maior abertura em termos de liberdades individuais. Tudo culmina com a repressão de 4 de Junho. Os sinólogos não têm dúvidas – perante o quadro a que se assistia, a China iria fechar-se de novo por mais uma décadas…

O regime ficou nos meses seguintes completamente isolado. A visita a Beijing do Governador de Macau, Carlos Melancia, é visto pelas autoridades chinesas como um sinal de compreensão, que agradecem.

Os sinólogos erraram duas vezes – a China não se fechou de novo, abriu-se ainda mais, como nunca. E a milenar China, a inamovível China, mudou. Radicalmente. Num processo inédito na história da Humanidade. Até hoje.

O mercado chinês absorve hoje muito do que a indústria de luxo europeia produz. E não apenas internamente. Os turistas chineses invadiram Londres, Paris, Berlim, Roma… Estão a chegar a Madrid e a Lisboa. Na Avenida da Liberdade, algumas das lojas já têm vendedores chineses, para corresponder às necessidades. Alguns operadores do luxo já fazem anúncios e revistas em chinês.

Portugal recebeu nos últimos meses o maior investimento estrangeiro da sua história. Empresas chinesas – China Three Gorges Corporation e State Grid International Development – compraram por centenas de milhões de euros participações, respectivamente, na EDP e na REN.

Parte, penso que substancial, da dívida soberana da República, foi tomada, nos últimos três anos, directamente pela China, mas os dados são sigilosos.

Vento de Oeste, Vento de Leste. Não é preciso ser um grande especialista para saber qual o que sopra hoje com mais força. Resta saber se isto será ou não o início de uma nova maré da História. A última durou aparentemente meio milénio…

E assim termino esta espécie de obras completas de William Shakespeare em 97 minutos – tratar de meio milénio em 15 minutos é atrevimento. Espero que o desculpem.

Fernando Correia de Oliveira




Da esquerda para a direita, Mosés Silva Fernandes, Carmen Amado Mendes, Fernanda Ilhéu, João Amorim, Fernando Correia de Oliveira, João de Deus Ramos (Fotos Adriana Correia de Oliveira)

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