Visão Nocturna
I
Alta noite, acordei. À claridade
de enfumada e mortiça lamparina,
vi uma estranha figura masculina
mostrar-se com orgulho e dignidade.
Alto, magro, avançado já na idade,
bigodeira grisalha, ele examina,
por detrás da luneta peregrina,
quanto o rodeia, em ar de gravidade...
Uma sobrecasaca, já no fio,
lhe envolve o busto: o decalitro esguio
completa e avulta a austera personagem.
A medo, perguntei: - Quem és, visão?
És real e palpável, ou então
sombra inconstante, fugitiva imagem?
II
Um passo à frente, alevantando o braço,
a aparição, com voz meio sumida,
assim falou: - Minha impoluta vida
desafia, no mundo, o tempo e o espaço.
Sou, da Família, o respeitável laço;
Do Governo e da Lei, regram mantida;
da rígida Moral sustenho a brida
e co'a Religião caminho a passo.
Tal como Deus, estou em toda a parte;
das Letras, da Política e da Arte
sou texto, sou epílogo e prefácio.
Instituição eterna e omnipotente,
sou este, sou aquele, sou Toda-a-Gente:
eu sou, enfim, o Conselheiro Acácio!
Cardoso Martha, 1945
De conselheiros Acácios
ResponderEliminareste país está cheio,
não passando de prefácios
todo o seu gasto paleio!
JCN