sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Meditações - há 135 anos... inauguração de uma ourivesaria no Largo das Duas Igrejas, em Lisboa

[...] Durante o semestre que finda este mez Lisboa não produziu nem um só livro util, nem uma só notavel obra d'arte na pintura, na musica, na poesia.

Não se fez nem uma prelecção nem uma conferencia litteraria ou scientifica. A estação toda passou-se como a estação anterior, como as estações precedentes, sem que esta sociedade em marasmo désse um unico signal de vida intelligente.

Lisboa é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S. Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda. Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus institutos particulares, o Atheneu, sociedade da natureza do Gremio Litterario em Lisboa. No Atheneu os cursos publicos, livres, gratuitos, abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia social no ponto de vista de espiritos altamente cultos.

Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta de objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os nossos ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver dispersar-se no ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias comprehenderam que este estado geral dos espiritos deveria começar a fatigar os habitantes de Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintarão ainda as condições de commodidade e havemos de ver os estanqueiros sairem ao encontro dos desejos do publico com colchões. Chegaremos á Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos os nossos carvajales deitados em camas, á porta.

A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro, tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita em Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano sobre um parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de ceu coberto de creme.

Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital.

Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom profundo, que não é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas côr de rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas feitas de substancias extraidas de uma cristalisação mimosa de beijos ternos e de perfumes castos.

No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições como pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas as scintillações do prisma.

Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias, revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça de cobra esmagada por um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma côr limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados, superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras, soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico.

Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas, entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças de filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, côr de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos repoussés; os jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos, nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem até as nucas.

Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados, costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando não ha serão.

Candieiros de gaz com fortes reflectores não só alumiam intensamente os objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem pedaços de espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio.

As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da transpiração do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados, cheios de exhalações mornas de roupa suja. Na mão esquerda o dedo que aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada, produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se com velhas flores em terceira mão, desbotadas e tristes; e das cuias, caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida dos vestidos, sae um cheiro acido de cabellos humidos e embrulhados, em fermentação.

Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé, embrulhada em fina renda branca, debruça-se no mostrador e aproxima da mão do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha carnuda, sensual, de comilona feliz.

Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem infinitamente para todas as direcções essa cabeça bonita envolta em renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da mão que enfia o brinco.

As macilentas Margaridas de olhos pisados vão ver em cada noite esse espectaculo de tentação, em quanto na esquina fronteira, na Casa Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra impudentemente as linguinhas de chamma e coçando os seus piqueninos chavelhos com freneticas contracções aduncas, como quem se sente inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade. [...]

Ramalho Ortigão, in As Farpas, Maio a Junho de 1877

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