sábado, 20 de março de 2010

Pista da semana - a colecção do relógios do Palácio da Ajuda



Maria Pia de Sabóia (1847-1911) era filha de Vítor Emanuel, rei da Sicília e de Itália e da arquiduquesa Maria Adelaide da Áustria. Casou em 1862 com o rei D. Luís (1838-1889). Com apenas 15 anos, a nova rainha de Portugal foi viver com o marido para o Palácio da Ajuda, os primeiros monarcas a fazerem do local residência oficial da Coroa.

A jovem teve que se adaptar a uma corte com velhos hábitos e de viver num palácio enorme e desconfortável. Para além da escultura e da pintura, dedicou o seu tempo livre à decoração do palácio. E à compra de muitos relógios.

Pessoa de personalidade vincada, enfrentou o duque de Saldanha depois do golpe de 1870, por ofensa ao rei. Ao saber do incêndio ocorrido no Porto, no teatro Baquet, em 1888, apesar do mau tempo que se fazia sentir, embarcou em Lisboa para prestar auxílio às vítimas. Depois do regicídio, em que perderam a vida o seu filho, rei D. Carlos, e o neto, D. Luís Filipe, herdeiro ao trono, enlouqueceu. Morreu no exílio no Piemonte.



Em Dezembro de 1996 era inaugurada no Palácio Nacional da Ajuda uma exposição temporária, “Tempo Real”, mostrando a colecção de relógios do Paço. Na preparação da exposição tinha-se aproveitado para se fazer o levantamento, o mais completo possível, das cerca de oitenta peças que compõem o espólio, bem como do seu restauro. Coordenada por Isabel Silveira Godinho, uma vasta equipa de especialistas produziu um trabalho exemplar. Bernard Pin, um dos mais respeitados restauradores de relógios em França, especialista em relojoaria antiga, ajudado pelo português António do Couto (figura lendária do século XX português relojoeiro em termos de reparação, e que viria a morrer pouco depois) conseguiram recuperar máquinas que há muito não trabalhavam. Para o catálogo, um elemento que se tornou precioso para quem estuda a temática do Tempo e da Relojoaria, houve a cooperação técnica especializada de Américo Henriques (responsável pela Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa), novamente de Bernard Pin (para relógios e autómatos musicais) e de José Malhão Pereira (relógios de sol e bússolas).

Diz-nos Isabel Patrões e Silveira Godinho que, “mestra na arte de escolher e comprar, a rainha D. Maria Pia não desperdiçava as suas idas ao estrangeiro para efectuar compras ou encomendas de novos relógios em casas especializadas: L’Escalier de Cristal, Maquet, Boudet, etc., ou em antiquários” e que “os exemplares escolhidos são elucidativos do seu bom gosto e exigência de qualidade”.



“A colecção, em grande parte adquirida pela rainha D. Maria Pia, principal responsável pela decoração dos espaços deste palácio, traduz de uma forma clara o gosto e sensibilidade estética vividos na segunda metade de Oitocentos”, reforça Maria Isabel Braga Abecassis, uma das investigadoras que trabalhou no catálogo. “A diversidade das peças que a compõem revela claramente o ecletismo artístico, marca essencial da mentalidade do tempo: nela se encontram modelos originais – caso dos relógios setecentistas, em que estão bem expressas as correntes estéticas da altura, lado a lado com as mais perfeitas imitações tão ao gosto do século XIX”.

A colecção da Ajuda corresponde exclusivamente às peças que ficaram guardadas no Palácio após o seu encerramento, com o advento da República, em 1910. Não estão ali incluídos todos os relógios da Casa Real Portuguesa, já que ficaram de fora exemplares que ainda hoje podem ser vistos no Paço Ducal de Vila Viçosa e nos Palácios de Belém, Mafra e Necessidades, que foram também residências reais.

Também não estão na Ajuda todos os relógios que a Família Real possuía à data da implantação da República. Isto porque o novo poder, depois de feito um exaustivo inventário, e separando os objectos que considerava serem pertença do Estado e os que via como pessoais, fez embarcar inúmeras caixas com artes decorativas, com destino aos membros da Família Real, no exílio, com obras de artes decorativas, entre as quais se contavam dezenas de relógios.



Cronologicamente, a colecção pode balizar-se entre os finais do século XVII e os últimos anos do século XIX, entre relógios de sala, de secretária, de bolso, de transporte ou jóias e adereços. Há ainda um núcleo de relógios de sol e bússolas.

“Na sua maioria, os maquinismos revelam ser de fabrico francês e suíço. Supomos que grande parte da colecção tenha sido adquirida em França, quer em viagens realizadas pelos monarcas, quer através de encomendas feitas às grandes casas comerciais, fornecedoras das cortes europeias: Boudet, Maquet, Escalier de Cristal e Rodanet, todas de Paris”, explicam Maria do Carmo Rebello de Andrade e Maria Manuela d’Oliveira Martins, duas outras investigadoras que trabalharam no catálogo.



Entre os relojoeiros de renome contam-se na colecção autores como Gio Pietro Callin, Le Comte, Causard, Jean Le Seyne, Patek Philippe e A. H. Rodanet, este último nomeado relojoeiro da Casa Real Portuguesa por alvará de 1868.

Gerações de relojoeiros passaram pelo palácio: António Pedro da Silva, José da Cunha Padrão, Joaquim dos Santos Franco, José Schrupp, Tiago António da Silva, Luís Lourenço de Sá, Carlos A. dos Santos, A. Justus, José Joaquim Ribeiro, António José Calisto e João Botelho da Costa, que iam semanalmente dar corda aos relógios da Ajuda e ocupar-se da sua manutenção e reparação.
Vários Alvarás Reais, atribuindo nomeação do cargo de relojoeiro honorário e fornecedor de relógios da Casa real, foram concedidos ao longo dos anos: a Paul Plantier, no ano de 1862, a José Schrupp no ano seguinte, a A. H. Rodanet em 1868, a José Moos em 1879.

Maria Isabel Braga Abecassis recorda-nos que, “elemento essencial no dia-a-dia do ser humano, o relógio foi para a família real do Paço da Ajuda um acompanhante permanente das alegrias e tristezas, dos bons e maus momentos, testemunho sempre presente no seu quotidiano”.

Fosse ele na decoração das salas, pois cada divisão tinha um ou vários exemplares, ou no dia-a-dia dos príncipes, como prova o recibo assinado por José da Cunha Padrão, relojoeiro da Casa Real, no ano de 1873: “Pelos concertos de 1 relógio de cima da mesa de mármore preto com figura de bronze da Sala de estudo de Suas Altezas – 1.600 réis”; ou ainda uma nota de despesa feita pelo príncipe D. Carlos em Nápoles, em 1884 – “Relógio que o príncipe comprou – 265 francos”.

Estava também presente nas muitas viagens da rainha D. Maria Pia, pois diversas notas manuscritas referem a compra destes mecanismos nas mais variadas cidades europeias: Paris, Viena, Salzburgo, Frankfurt, Munique, Hamburgo, Nápoles, Turim, Milão, Genebra. Ou nas numerosas ofertas da rainha a familiares, amigos e servidores. São várias as anotações, escritas pela própria ou por acompanhantes, relativas a encomendas de relógios. É o caso da seguinte, feita em Genebra, em que a rainha menciona a compra de um para o seu filho D. Afonso: “Mandei fazer (...) [relógio] para Afonso d’ouro com horas (...) Letra A.H. [Afonso Henriques] coroa ducal em esmalte encarnado”. Ou das compras efectuadas em Paris na famosa casa Rodanet, quando da viagem da rainha feita provavelmente no ano de 1905: “Encomendou-se um relógio para o Dr. Tavares (...) com a assinatura de S.M. com dois mostradores com minutos e segundos (...). Encomendou-se outro igual ao do Dr. Tavares para o Dr. Gama Pinto com (...) assinatura de S.M.”.

Há ainda documentação referente a um relógio em forma de esfera, com pequenos diamantes engastados, oferecido por D. Maria Pia a D. Luís, no aniversário do rei; ou a vários relógios oferecidos pela rainha a crianças convidadas para o baptizado do príncipe D. Luís Filipe, filho primogénito de D. Carlos.

No que respeita ao rei D. Luís, nos manuscritos da Biblioteca da Ajuda há também alguma correspondência versando temas de relojoaria.

Assim, para 1862, uma carta enviada a partir de Besançon, de E. Cressier, fabricante de relógios, dirigida a D. Luís I, oferecendo-lhe um relógio a que se dá corda, e se acerta, sem chaves.
De 1863, há uma súplica de Paul Plantier, filho, pedindo ao monarca o emprego de Relojoeiro da Casa Real, como emprego honorário apenas, “vago por morte de Vielle”.

Do mesmo ano, uma carta de A. Ageron, relojoeiro mecânico de Grenoble, oferecendo a D. Luís um invento seu – sistema de salvamento – “do qual se poderão tirar grandes vantagens para a Marinha”.
De Paris, em 1865, chegava uma carta de A. Charpentier, relojoeiro famoso, propondo ao rei algumas peças astronómicas e de precisão.

Finalmente, em 1908, já depois do regicídio, chega de Bruxelas, para o Infante D. Afonso, uma carta de Adrien Huybers, propondo-lhe um trabalho seu, de que envia as fotografias – um relógio que fez em honra da memória de D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe.

A pista da semana é pois uma visita ao Palácio da Ajuda e à sua colecção de relógios reais.

Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)

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