As cegonhas que têm feito ninho nos últimos anos no cimo da Torre do Relógio de Mértola ficaram com casa de cara lavada: a Escola Bento de Jesus Caraça, no âmbito do curso de Técnicos de Património Edificado, em colaboração com a Câmara local e o apoio da Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, procedeu há cerca de dez anos a obras de restauro e conservação no conjunto arquitectónico, que estava em grau avançado de degradação e que sofrera a última grande intervenção há cerca de 200 anos.
Agora muito na moda nos circuitos de um certo turismo cultural, Mértola tem conseguido projectar uma imagem em defesa da sua história, do seu património monumental e ambiental. Os trabalhos de Cláudio Torres, no Campo Arqueológico local, realçando a presença islâmica no que foi um importante posto comercial do Guadiana, têm contribuído para fortalecer essa imagem.
A intervenção na Torre do Relógio, onde o emblemático ninho de cegonha foi preservado, vem na sequência da recuperação feita há alguns anos no próprio relógio da vila.
Não há informações seguras sobre quando foi mandada construir a Torre, sendo provável que surja em finais do século XVI. O sino que ainda hoje lá se encontra ostenta a data de 1593, o que poderia indiciar o início do funcionamento do relógio (cujo mecanismo estaria ligado a um martelo, que faria soar as horas). Joaquim Manuel Ferreira Boiça, numa monografia dedicada ao assunto, acautela não ser, porém, claro “que se esteja na presença do sino que originalmente se instalou, uma vez que não é de excluir a hipótese do mesmo ter pertencido inicialmente a um outro edifício público”.
De qualquer modo, é no final do século XVI e início do século XVII que se dão as transformações urbanas na Praça do Município de Mértola (construção dos edifícios dos Paços do Concelho, da Auditoria, do Açougue, todos em banda única, onde hoje se encontra o Tribunal) e onde emerge a Torre do Relógio. A vizinha Rua Direita, que assim se chamava desde a Idade Média, passa a chamar-se Rua do Relógio e, ainda hoje o povo assim a designa (embora actualmente se chame Dr. Batista da Graça).
Refere Joaquim Boiça que a primeira notícia histórica que se conhece da Torre do Relógio data de 1679. Em acta camarária daquele ano refere-se que estava “pegada à praça sobre o Rio Guadiana” e que dispunha de “sino, pesos e mais aprestos”. Pouco depois, em 1690, sabe-se que dela tratava o mestre serralheiro Manuel Duarte, um dos muitos funcionários da câmara que, ao longo de dois séculos, foram investidos no cargo de Relojoeiro de Mértola.
No início do século XVIII, em data incerta, o relógio foi transferido para a torre da Igreja Matriz, por ordem do Juiz de Fora da vila, Francisco da Costa Brito. “Embora se ignorem as razões imediatas que presidiram a tal mudança, é bem provável que estejam associadas à reconstrução, levada a cabo naquela época, da torre sineira do templo, surgindo esta, aos olhos do dito Juiz, e certamente aos do Prior e dos restantes elementos do clero, como local mais apropriado para o funcionamento do relógio”, diz Joaquim Boiça.
Mas não foi longa a presença do relógio na sua nova morada. A vereação em exercício no ano de 1742 determina que a máquina deve voltar à praça da vila, para a torre que fora sempre a sua. Nada se sabe sobre quem fez o primitivo relógio ou quais as suas características, apenas tendo ficado registado arranjos cíclicos, onde por vezes as peças deterioradas pelo uso (nomeadamente cordas e rodas dentadas) eram substituídas.
No final do século XVII, a manutenção passa a ficar a cargo de José Gomes, simultaneamente o carcereiro da vila. Esta situação iria manter-se durante mais de um século. É que, durante muito tempo, o piso inferior da Torre do Relógio serviu de espaço complementar ao da prisão, de "segredo" local, para onde se encaminhavam os presos mais temidos ou incómodos. Nas últimas décadas do século XIX a situação modifica-se e o cargo de relojoeiro passa a estar associado ao de guarda do cemitério e de contínuo da câmara, para desaparecer de todo, enquanto tal, a partir dos anos vinte do século XX.
Clemente Fernandes (1742/1747), Julião Pereira (1748/1750), Francisco Xavier da Cunha (1752/1765), José Gomes (1789/1809), João Caetano (1809/1810), João Francisco Martins (1813/1816), Matias Pereira (1816/1819), José Infante (1819/1828), Pedro José Feio (1827), Venâncio Gonçalves (1828/1832), Ludovico António (1837/38), Zeferino António Taveira (1844/1845), Guilherme Pereira (1849/1880), Isidoro Joaquim (1895/1909), José Pereira da Costa (1909/1918) e José António Lopes (1919/1920), este último com um ordenado anual de 12 mil réis, são nomes referenciados na manutenção do relógio.
Em finais do século XIX a substituição do relógio foi tema de várias reuniões de câmara e, em 1880, inscreve-se uma verba no orçamento municipal para esse fim (300 mil réis). Em Dezembro desse ano procedeu-se à compra de um relógio, fabricado pelo relojoeiro Francisco da Costa e Sousa, estabelecido em Lagos. Foi ele próprio, como era costume na época, quem instalou a máquina na torre. O mostrador primitivo, porém, com ponteiro apenas para as horas, ficou. Até hoje. Quanto à máquina antiga, foi decidido que seria transferida para Igreja paroquial de Santana de Cambas. “Em nenhum documento conhecido se esclarece se a transferência se efectivou”, diz Joaquim Boiça.
O novo relógio permaneceu em funcionamento durante mais de um século. Nas últimas décadas era Francisco Caetano Bento, calceteiro, mais conhecido por “Chico Rouxinol”, quem oleava e dava corda à máquina, quatro a cinco vezes por dia. No início dos anos 90 estava parado, por decisão do município, já que era motivo de troça o seu desacerto. “Aquilo parecia mais um chocalho”, dizia em 1995 o improvisado relojoeiro. Mas, como já se disse, foi restaurado no final dos anos 90. Foram substituídas peças, reparadas outras.
Mas hoje, a Torre do Relógio de Mértola, albergando um mecanismo que, durante mais uns anos, fez soar de novo no velho sino, as horas e meias horas tão certas quanto possível, está de novo silenciosa. O relógio precisa de nova intervenção.
Mesmo assim, não deixa de ser sempre proveitosa uma ida a Mértola, pelo que a pista da semana é esta localidade da margem esquerda do Guadiana.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003).
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